Por ocasião do ciclo Retrospectiva Kim Longinotto: Histórias no Feminino - promovido pela Zero em Comportamento nos dias 28, 29 e 30 de Março (Passos Manuel, Porto) e 4, 5, 6 e 7 de Abril (Cinema City Classic Alvalade, Lisboa) - Joana Gusmão traz-nos a seguinte entrevista, publicada em exclusivo na Viral, à qual se segue uma breve sinopse dos filmes apresentados. A entrevista teve lugar no dia 26 de Março pelas 14.00 via Skype, em Lisboa.
JOANA – Olá. Estou um pouco nervosa, isto parece um pouco um encontro às escuras.
KIM – [risos] Oh, não estejas nervosa. É melhor que seja apenas uma conversa.
J - O primeiro filme que vi foi Pink Saris. Sampat Pal Devi é uma activista com uma força irredutível. Fiquei muito comovida pelo trabalho desenvolvido contra a violência imposta a estas mulheres. Ao mesmo tempo, Sampat é também muito ‘performática’, motivada claro pela presença da câmara e pela oportunidade de ter uma voz no outro lado do mundo. Nestas situações, como é que a realizadora se mantém invisível? A certa altura não dá vontade de fazer como na ficção, pedir para um actor fazer menos em vez de mais?
K - Percebo o que queres dizer. Mas o que era interessante na Sampat era que ela estava a usar a sua fama para divulgar a sua causa. Viste o Breaking Bad?
J - Sim.
K - Lembras-te quando o Jesse volta para a sua família e vemos como está feliz por ter recuperado a confiança dos pais? Depois os pais encontram o charro escondido no quarto e expulsam-no de casa. Jesse arca com a culpa, sendo que o charro é do irmão mais novo. Ele é a verdadeira pessoa moral naquela situação, e o irmão mais novo é a má pessoa. Acho que é isso que estamos a tentar mostrar em Pink Saris. Não é simples. Amamo-la e odiamo-la. Como os políticos que admiramos no passado e que depois se tornaram monstros, como é o caso de Robert Mugabe. Como é que isto acontece, como é que o poder muda as pessoas? Sampat ainda se preocupa e isso vê-se no filme, tal como também se vê o seu egoísmo.
J - É maravilhoso como não a filmas de uma forma unilateral e mostras sempre os dois lados. Não a tornas agradável, pelo menos mais agradável do que ela é na realidade. Gostaria que falasses um pouco da forma como te aproximas das pessoas. Digo isto literalmente, porque és tu a camera woman. As situações que filmas são muito intensas, por isso pergunto-me se consegues sempre pensar nos planos racionalmente.
K - Estou sempre a pensar nos planos. Nem sempre gosto de mim por isso. Viste Rough Aunties? É como se eu fosse duas pessoas ao mesmo tempo: Estou triste pela morte do filho da minha amiga, mas tenho que filmar isto bem porque sou uma testemunha, e este plano tem que funcionar. Filmo o rio, temos que ver o local onde ele se afogou, depois mudo o plano para as pessoas reunidas em volta da mãe, e depois para as amigas mais próximas. Como é que isto funciona no filme? Quero que as pessoas sintam que estão lá comigo. Essa é a minha responsabilidade. Posso ser indulgente e chorar, mas isso não ajuda ninguém, só me faz sentir melhor comigo própria. Não estou lá como amiga, estou lá para fazer um filme para os meus amigos. Oito crianças morreram naquele rio. Era necessário mostrar as consequências dos interesses económicos na vida daquelas famílias.
J - Estas mulheres, protectoras de crianças vitimas de abuso sexual e de outros tipos de violência, são ferozes e calmas ao mesmo tempo. Há quase um tratamento profissional na dor. Filmas estas mulheres tão fortes que vivem em partes do mundo tão frágeis humanamente. Senti algum embaraço por ser uma mulher ocidental, nas suas 'pequenas' lutas diárias: Ah, o meu marido não lava a loiça. Tens vontade de filmar estas histórias também?
K - [risos] Acho que é tudo importante. Acho que se eu quiser mesmo contar determinada história, faço um filme. Como quando fiz Hold me Tight, Let me Go (filmado na Mulberry Bush School, no Reino Unido) apaixonei-me por aquela escola e tive que filmar o trabalho extraordinário que se fazia ali.
J - Citando uma entrevista tua, uma vez disseste que não precisavas de ser interessante, as pessoas que filmas é que são interessantes ('What's brilliant about making films is that you don't have to be an interesting person. It's the people you film who are interesting.') Acho isso muito interessante [risos]
K - Ah, isso veio no seguimento de uma outra coisa, perguntavam-me porque é que eu não aparecia nos meus filmes. Acho que tento fazer uma espécie de ficção, embora não seja de todo uma ficção, não dou indicações às pessoas [pausa] Viste “As vidas dos outros” (Das Leben der Anderen)? O homem está a observar as pessoas, e à medida que as vai observando, é como se uma janela se abrisse no seu coração. O que tento fazer é ser o mais transparente possível, como se olhasses para alguém através de um vidro. Aquela pessoa podia ser a tua irmã, a tua mãe, sentes que conheces aquela pessoa. Mas se eu estiver lá, é outra coisa. Não estou interessada em mim, quero que tu conheças a pessoa que estou a filmar, e que te sintas inspirada por ela, tal como eu.
J - Fala-me da bondade, tão presente nos teus filmes. De onde vem?
K - Se fosses à África do Sul e conhecesses aquelas mulheres (Rough Aunties), sei que irias apaixonar-te por elas. É tão fácil gostares delas que só pensas em celebrá-las.
J - E antes disso, antes dos filmes? Onde aprendeste a gostar das pessoas?
K - Bom, eu não gostava dos meus pais. E supostamente os teus pais são aqueles que te ensinam a amar e a ter cuidado com os outros. Acho que era por isso, por não saber, que tratava mal as pessoas, nas minhas relações. Mas ao longo do tempo e através dos meus filmes, percebi que não tinha que ser assim.
SINOPSES DOS FILMES
PINK SARIS
Kim Longinotto, 96’, 2010
Em "Pink Saris", acompanhamos a história de Sampat Pal, uma complexa e singular activista política, líder do movimento Gulabi Gang, que trabalha pelos direitos das mulheres na região de Uttar Pradesh, no norte da Índia. Assistimos ao empenho individual de Sampat, referência para muitas mulheres maltratadas, na mediação de dramas familiares, testemunhada por dezenas de espectadores, defendendo pessoas em situações de vulnerabilidade e que desnudam as convenções da sociedade Indiana.
DIVORCE IRANIAN STYLE
Kim Longinotto e Ziba Mir-Hosseini, 80’, 1998
Um olhar intimo sobre a vida conjugal do Irão e seus conflitos através das histórias de seis mulheres que invocam o direito de se divorciarem num país onde a lei favorece os maridos. Num registo alternadamente cómico e trágico e tendo por cenário um tribunal de divórcio em Teerão, acompanhamos estas mulheres no seu esforço para chegar a um resultado favorável num meio de leis parciais, políticas administrativas contraditórias e severas restrições culturais.
SISTERS IN LAW
Kim Longinotto e Florence Avisi, 104’, 2005
Em "Sisters in Law" assistimos ao trabalho de duas mulheres da Associação de Mulheres Juristas (WLA) de Kumba, nos Camarões, que prestam apoio jurídico a mulheres e crianças vítimas de abusos, que de outra forma não seriam considerados pelo sistema judicial numa sociedade fortemente patriarcal marcada pela tradição de abuso e de violência. Um filme marcante e por vezes hilariante, que mostra um feroz acto de coragem determinado a melhorar a comunidade e talvez mudar o país no processo.
THE DAY I WILL NEVER FORGET
Kim Longinotto, 92’, 2002
Documentário marcante, onde Longinotto retrata o tema da mutilação genital feminina no Quénia, com excepcional sensibilidade e franqueza. De depoimentos comoventes de mulheres que foram submetidas à circuncisão até entrevistas com idosas matriarcas que teimosamente defendem a prática, o filme retrata a complexidade das polémicas e conflitos em torno da angustiante questão do combate à tradição.
ROUGH AUNTIES
Kim Longinotto, 103’, 2008
Filme sobre o dia a dia de um notável grupo de mulheres destemidas que lutam contra o abuso sexual de crianças e mulheres, negligenciadas e esquecidas de Durban, cidade da África do Sul. Apesar da dura realidade com que trabalham na organização de bem-estar infantil, Bobbi Bear, permanecem firmes nas suas convicções pessoais, enquanto lutam contra a apatia e a corrupção, procurando justiça para as vítimas. Olhar inspirador e humanitário de uma realidade devastadora e cruel.
HOLD ME TIGHT, LET ME GO
Kim Longinotto, 100’, 2007
A Mulberry Bush School, em Oxfordshire, na Inglaterra, é uma escola especializada em lidar com crianças emocionalmente perturbadas, com comportamentos violentos e excluídos do sistema de educação comum. Nesta escola recebem a atenção, paciência e empenho de mais de cem responsáveis, entre docentes e auxiliares, que enfrentam os seus constantes acessos de raiva, agressão física e destruição, mas também as manifestações de carinho e afeição. Uma difícil luta entre o desequilíbrio e a harmonia.
DREAM GIRLS
Kim Longinotto e Jano Williams, 50’, 1993
“Dream Girls” é um documentário fascinante sobre a famosa escola de teatro musical japonesa Takarazuka, cujos espectáculos são reminiscências da Broadway dirigidos a um público feminino, nos quais a popularidade da actriz no papel masculino supera o das estrelas pop do mainstream. Ao contrário do teatro japonês tradicional, todo os membros desta escola são mulheres que se submetem a anos de reclusão e disciplina intensa. Uma reflexão sobre questões de género e identidade sexual e contradições culturais no Japão da actualidade.
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