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A Luz entrevista. Miguel Branco

Mário Caeiro

S/Título (Anão), (detalhe) 2015, grés, 59x29x21,5cm, Foto Fred NS

 

 

Eu faço parte da comunidade dos seres humanos que preferem as imagens paradas às imagens em movimento. — Miguel Branco


Miguel Branco é um artista discreto e elegante. Um senhor artista. Com um trabalho continuado em torno de um eixo, de um foco que um dia lhe abriu o percurso, como que numa revelação, numa epifania artística: […] nesse momento [ao assistir a uma projecção de slides pelo pai, com imagens de arte egípcia e mesopotânica], fui atingido no centro, perfurado ao ver essas imagens, imóvel e sem fuga possível fui trespassado… [risos].

Os anos entretanto passaram e é assim que o artista é brevemente apresentado no sítio da Fundação Calouste Gulbenkian:

Ao misturar tintas sobre uma tábua de madeira em 1987, Branco reparou em certas figuras que se formavam espontaneamente na matéria dos pigmentos. A superfície assim carregada de cores em estado bruto, somente aflorada por figuras que surgem isoladas e estranhas, sem narrativa ou contexto, definiria a ideia de fulgor material de que os seus óleos ainda hoje vivem. Se na sua primeira exposição individual, Objectos Discretos (1988), mostrou sobretudo esculturas de pequenas figuras humanas em terracota, acabaria por dedicar-se em exclusivo à pintura a óleo sobre madeira ao longo do decénio seguinte.


Assim aconteceu durante muito tempo, mas Branco, que parece atravessar um período de grande serenidade e em absoluto controlo do seu metier, tem regressado recentemente à escultura. Foi o caso da importante exposição Deserto, no Pavilhão Branco em Lisboa, 2011. Hoje, continuando a cultivar a pequena escala, as obras de Miguel Branco continuam a apresentar uma forte intensidade material, e quase nunca abandonam a figuração, através de referências e fontes que oscilam entre a cultura popular, a história natural ou a pintura erudita. Ora, se olharmos para a exposição na Pedro Cera, este regresso está mais decidido e consistente do que nunca.



Vista da exposição, foto Elsa Loff

 

 


Por vezes existem também peças que se arrastam durante anos, ficam primeiro em stand by sobre a mesa de trabalho, durante semanas, à espera. Senão progridem são postas em reserva… — 
Miguel Branco




Negro Grés na Pedro Cera


As esculturas apresentadas em Luz ostentam, desde logo, enquanto objectos manufacturados, um duplo carácter. Para Philip Cabau, em conversa com o artista, Há portanto um saber artesanal, um “craft” que assim é perseguido (na forma, escala, cor, textura…): sempre o verbo fazer, não o produzir. Mas por outro lado recorres desde sempre à invenção de dispositivos de atenuação ou anulação dessa dimensão que na matéria inscreve a expressão dos gestos do seu autor…


Com efeito, Miguel Branco recorre com a maior subtileza, desde há algum tempo, a ferramentas e tecnologias digitais, que usa de forma tão inventiva (Cabau) como discreta, senão invisível. As figuras de luz são portanto profundamente marcadas, – in-formadas se quiséssemos recorrer à terminologia de Erwin Flusser em O Mundo Codificado – por um craft genuíno, seguro dos seus processos, contemporâneo.




S/Título (Figura Pre Colombiana), 2012/2015, grés, 63,3x52x41cm, Foto Fred NS

 




As peças são construídas em barro, como desde há milenios se modelam as esculturas e as peças em cerâmica. Trata-se aqui de um craft – por excelência – e de trabalhar a partir dele, até ao fim. A natureza deste material convoca coisas especiais, ancestrais. O barro, que é terra misturada com água, é o mais primitivo de todos os materiais de construção e de modelação. Isso é algo muito forte, muito intenso. E depois, o barro cozido, a ligação à cerâmica e a criação de contentores, coisas tão antigas… — 
Miguel Branco


Um convívio regular, ainda que esparso, tanto com estas (como com anteriores) imagens de Miguel Branco, configura um percurso que é uma iniciação progressiva, convocando, da parte dos espectadores relativamente desatentos ou apressados, um tipo de específico de atenção. A coisa não passa tanto ou não apenas pelas questões da técnica ou do imaginário, mas por uma espécie de sentido semi-oculto e subterrâneo que estas obras de arte – aparentemente autónomas, portanto teoricamente ‘meros’ objectos – transportam, uma vez percepcionadas, como uma série de figuras expostas em simultâneo no espaço galerístico.

Aí, a série imediatamente anterior – a irónica macacada de Terra (Galeria João Esteves de Oliveira, 2014) – já tinha sido uma poderosa manifestação da resiliência deste artista ao fútil e ao superficial. Mas a nova exposição na Pedro Cera (primeira individual nesta galeria) é como que ainda mais animal, convocando se calhar aquilo que se me ocorreria definir, à Novalis, como a natureza animal da chama. Não passa de uma intuição.




Vista da exposição, foto Elsa Loff

 

 

Nota Cabau que, muito em particular nesta exposição, nunca transparece como assunto central a noção de série – no sentido de programa, tema e variações, ou múltiplos… Com a autonomia de cada peça assim garantida, podemos circular pela mostra ao ritmo da nossa atenção, em busca de cada sucessivo encontro, como num museu que tivesse reunido artefactos de diferentes lugares intemporais mas de alguma forma desconhecendo parte essencial do seu contexto original, histórico. É também por isso que podemos então olhar nos olhos os desafios de cada obra, desafios diversos, precisamente porque as figuras, apesar de uma aparência relativamente uniforme ao primeiro relance, são, ao perto – ao toque do olhar – muito diferentes umas das outras.

 

 

O jogo das perguntas e respostas

 

Mas atentemos ao diálogo suscitado pela entrevista de Philip Cabau a Miguel Branco, que é em si um labor colaborativo que esculpe a própria recepção de uma obra que, se desde há bastantes anos já era claramente inovadora, com um apelo próprio, hoje avança política- e psicanaliticamente para novos patamares de relevância e sentido da sua própria publicidade. Esta Luz, disposta como uma espécie de acervo etnográfico, é nestes termos uma síntese entre a capacidade de qualquer artista em se entregar à matéria e aquela capacidade mais restrita, só para alguns, de o fazer com a força de uma ancestralidade quase assustadora.




S/Título (A Morte a Rir) (detalhe), 2015, grés, 59,5x19,5x28cm, Foto Elsa Loff

 

 

Com efeito, as peças evocam a síntese formal do Antigo Egipto, os estilos Pré-Colombianos, o realismo dos retratos romanos ou ainda a estuária oriental… Mas invocam sobtetudo uma vertigem de falsas memórias – espectros – que constroem um hiperbólico momento de encontro com aquilo que ‘lá no fundo’ sabemos, mas seria impossível dizer de outra forma. Nas palavras do press release em inglês: beings absorbing the light of the world and then instead reflect its shadow and its condition of impossibility.

Ora, sublinhe-se, este poder de inscrever um olhar amplo sobre a Contemporaneidade acontece nesta mostra a partir do próprio design expositivo, definido pelo próprio artista a partir do conceito de… acústica. Afirma Cabau: na montagem das tuas exposições há, desde sempre, um particular cuidado na apresentação dos trabalhos, na sua montagem, como que um rigor extremo em evitar dissonâncias. Completa Branco: O que se passa é que existem tensões, contrastes, familieridades, sintonias, oposições, mas essas forças têm que estar afinadas. Quando Philip então comenta que o espaço é também ele parte integrante do processo, o Miguel remata: A exposição “final” dos trabalhos é ainda outro trabalho em si mesmo: a construção de um território, de uma “máquina”… ou de uma acústica…




S/Título (Escriba), 2012/2015, grés, 63x70x49,5cm,  Foto Fred NS

 




Para além do jogo – da linguagem, da arte, com as expectativas – estamos por outro lado naquele terreno e naquele abismo que em Kafka era representado pelo absurdo; aqui em Branco essa vertigem está mais próxima de uma deslocação criteriosa das expectativas do espectador para a estes entregar algo de mais essencial, uma obra de íntimo estranhamento e contida figuração do esplendor que afinal reside em qualquer pequeno-grande processo de síntese do sentido da vida. Como não poderia deixar de ser, e mais uma vez como em Kafka e seus oximoros, estas figuras escuras e imóveis em grés (transformado pelo fogo por forma a aparentar uma pedra negra), verdadeiros silêncios personalizados, dão pelo (paradoxal?) nome de Luz e o seu caráter mortal nalguns pontos ‘inacabado, noutros ‘ruínico’ transmite uma sensação de que há ali emoções tão reais quanto rigorosamente definidas – algo que acaba por aparecer nos títulos das obras.




S/Título (Testemunha), 2012/2015, grés, 94x39,5x27,8cm, Foto Fred NS

 

 

(Quase todos) os títulos das peças em Luz são a concreção poética, discursiva, de uma série de retratos de estados psicológicos, relativos a seres que (sabemo-lo mas não o saberíamos dizer facilmente, não com palavras) nos enquadram de forma mais ou menos liminar a nossa própria vida: do “Banqueiro” à “Testemunha”, do “Mendigo” ao “Anão” e ao “Senador”… ao limite, da “Figura de pé” ao “Escriba sem mãos”, serão retratos do Povo que como já dizia Richard Wagner na sua A Obra de Arte do Futuro (1849) somos todos, do pedinte ao príncipe. É sobretudo aqui que a dimensão política da mostra se torna evidente.

 


S/ Título (Senador), 2012/2013, grés, 58x20,5x18,5cm, Foto Fred NS

 

 

Confrontemo-nos então com o livre-arbítrio do artista a partir das perguntas-gazua de Philip Cabau, que são reflexões incisivas acerca do sentido da arte na actualidade, isto é, da actividade artística conforme realizada pelo artista (que o resto seria conversa), num tempo de acelerada depauperização dos valores da Atenção, do Envolvimento e da Graça. Definitivamente, há aqui matéria para iluminar dias estranhamente sobr’iluminados. 

Philip Cabau: Quando no outro dia, no teu atelier, vi pela primeira vez estas peças distribuídas por ambas as salas, uma com as peças varridas pelo sol, e a outra, interior, com os focos suspensos do tecto incidindo verticalmente sobre as esculturas, senti de imediato que a luz estava no centro mesmo desta exposição. A dada altura da conversa com Miguel Branco, Philip Cabau acrescenta que identifica nestes trabalhos uma luz arqueológica, já que as esculturas nos dão a sensação de que que chegam de épocas longínquas, cobrindo um espaço vastíssimo.

Miguel confirma ao que as peças aspiram e decididamente conseguem – habitar um espaço universal. Para o artista – como vimos no episódio  dos slides na infância – a criação é um plano da existência que colocou de certa forma o real quotidiano à parte. Desde essa mágica sessão em família, Miguel Branco compreende que há um poder próprio, fulminante, que nos chega do arquivo da história. Esse é aliás o poder que conduziu o artista, e até certo ponto, nós próprios, espectadores-com-ele, ao já referido mundo paralelo.

 


Vista da exposição, foto Elsa Loff

 

 

No caso particular desta exposição, será um mundo de seres o que as esculturas re-presentam. Cabau sintetiza: Mais do que representar homens (ou humanóides), as figuras convocam qualidades – de autoridade, poder, legitimidade – que são nossas, humanas. Corpo, rosto, olhos, são os lugares onde confluem as figurações. Contudo, sendo as esculturas produzidas em grés negro, com diferentes níveis de espessura dos grãos, esse movimento figurativo sofre o atrito do próprio material, adquirindo a sua presença um estranho equilíbrio entre esvaziamento e significação.

Branco acrescenta então que se trata de presenças que definem o seu estatuto a partir do entendimento da ideia de superfície que nelas se consuma – o atrito de que fala Cabau viria então da tensão entre a legibilidade e a ilegibilidade (já que certas figuras ou partes delas, face a outras figuras ou partes delas, surgem como algo de subtilmente divergente ao nível das formas). Quando Cabau fala dessas distinções fundamentais entre peças, Branco conclui: Sim, as esculturas, pelo contrário, deverão estar “acabadas”, “seladas”, fechadas dentro de si mesmas. Referem-se umas às outras e à série no seu conjunto, mas cada uma deverá ser “self-contained”, deverá ser crítptica, tumular

Arte humana e definitiva portanto. E essencial, numa época de aceleração estonteante das imagens e de aperto do cerco que nos fazem. Esta exposição é portanto particularmente alternativa em termos da comunicação específica que inscreve, da sombra (Permiola, citado na abertura da conversa) que projecta. Cabau: […] aqui é como se cada trabalho fosse agora, ele mesmo, indiferencialmente trespassado pelas categorias da arte, resultando estas numa presença espectral onde as fronteiras já não são relevantes – na medida em que tudo pode ser comunicado. Estas imagens negras, estas ideias negras, cercam-nos – comunicam connosco – a partir da sua imobilidade e do seu silêncio e isso obriga-nos a parar para entrar em diálogo com o pensamento.

 

Depois, de um momento para o outro, tudo encaixa e dispara a alta velocidade, é-se sugado por um feixe de luz… — Miguel Branco


Concluo, com uma imagem do atelier de Miguel Branco, para memória futura:

Foto Fred NS
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