Os dinossauros não se adaptaram bem ao consumo e ficaram pelo caminho da evolução. Talvez por não serem demasiado inteligentes. Ter o cérebro longe da cabeça era uma ajuda fantástica, mas faltava-lhes esse imponderável que faz salivar à mínima ideia de consumo.
É verdade que nessa altura não havia produtos importados, nem carros de sport, e a imagem que queremos oferecer de nós próprios estava, necessariamente, pouco desenvolvida antes da invenção do espelho. Especular não era com eles.
Ilustração: xenomorph01
Existia, claro, a relação de predação, mas estava sujeita às leis da sobrevivência. O predador predava e a presa contraia-se, fugia ou atacava e às vezes deixava de ser presa. O predador esfomeado é imaginariamente a sua presa: sonha com ela, baba-se por ela, transforma-se nela. Mas isto é a lei da selva. A evolução da humanidade (graças à célebre dialéctica do pé-mão-cérebro que vem em qualquer manual escolar) ultrapassou esta incómoda limitação e agora temos o dom de babar indiscriminada e simultaneamente por tudo e tudo é potencialmente presa.
Escondemos tudo o que não é civilizado para baixo da carpete assinada.
Porque por aqui somos muito civilizados. Escondemos tudo o que não é civilizado para baixo da carpete assinada. Escondemos o cheiro e a aparência e tudo o que pode parecer natural. Um acto nobre, na medida em que ajudámos a criar o imenso império da cosmética que estende os pseudópodes inclusivamente à nossa alimentação sofisticada.
Foto: bowie15
Nestes países, que se dizem civilizados, a visão é considerada como o sentido mais desenvolvido, mas uma análise, mesmo superficial como esta, leva-me a concluir que o sentido mais desenvolvido entre nós é o da gustação. Italo Calvino escreveu um conto sobre o sentido do gosto em que as relações entre as pessoas eram determinadas pela mastigação. Não é por acaso que se chama Sob o Sol Jaquar. Tudo nos leva de volta à selva.
Ilustração: 99u
Mas não estou a falar de chocolates, um dos eleitos produtos de consumo. Na verdade, o que interessa é consumir. Somos gente tão desprendida que consumimos não importa o quê. Deve ser este despojamento que procuram os consumistas de ideias viajadas que, nestes tempos correntes, têm como paradigma a Índia. Como se vai procurar longe! E a coincidência solidária de procurarem todos no mesmo sítio!
Ilustração: Roland Hausheer
À volta sabe bem visitar as grandes superfícies. A gustação hiper-desenvolvida começa na vontade irreprimível de vir para a rua, e mais ainda, para os shoppings. Mas onde salivam quantidades industriais é junto às montras que mostram tudo aquilo que poderemos ser num mero acto de compra. Podemos Ser agora e pagar mais tarde. Podemos Ser inteiros e pagar às prestações. A nossa imagem constrói-se com fragmentos de marcas invejadas. Salivamos sem ferocidade diante de qualquer presa. Abrimos as goelas por onde não cabe nem mais um pequeno telemóvel e nem sequer reparamos que nos tornámos tão indesejáveis que os verdadeiros desejos nos foram abandonando pouco a pouco.
Podemos Ser agora e pagar mais tarde.
Instalação "the Shoe Christ" de Petr Motycka
Dos tiranos sáurios só ficaram os cromos antes de aparecerem as Barbies, todas iguais e todas diferentes. Quando era pequena liam-me contos de fadas onde os sapos eram, na verdade, príncipes. Nesta selva só há tirano sapos a babarem-se pelos charcos coloridos do consumo. Mas uma coisa vos digo: por mais que mudem de carro todos os anos e que estejam cobertos por peles bem assinadas, nunca por nunca, se transformarão em príncipes que vivem felizes para sempre. Que histórias contam aos vossos filhos?