A nossa infância define, de um modo geral, aquilo que somos mais tarde, constituindo o período de aprendizagem e experiência em que começa a traçar-se o nosso futuro caminho. No meu caso concreto, existe um momento e uma experiência específica que trago ainda muito presente, e que influenciaram a minha percepção no que diz respeito à arte e à arquitectura, tendo definido as raízes do meu profundo interesse por estas áreas. Aconteceu numa mercearia perto da Praça do Chile, na R. José Ricardo, cujo espaço era extramente reduzido (talvez uns 3x3 ou 4x4, e uns 4.5m de altura). O meu pai era amigo do dono e costumava levar-me lá frequentemente.
As paredes da loja estavam cobertas por estruturas destinadas ao armazenamento de bens: tratavam-se sobretudo de móveis de madeira com gavetas, no topo dos quais se empilhavam armários com portas de vidro que se estendiam até ao tecto. A maior parte das vezes, estas gavetas e portas de vidro encontravam-se abertas ou meias abertas, de forma aparentemente aleatória, o que me provocava, de cada vez que lá ia, uma sensação de desmaterialização do espaço.
Situado ao canto, o balcão media cerca de 2 metros e estava cheio de diferentes tipos de velas, frutos secos, um moinho de café e uma velha máquina registadora. Estas duas últimas peças compunham a banda sonora para a extraordinária experiência que era ira àquela loja. Mas, para além do som dos grãos de café a serem transformados num pó refinado, o moinho libertava também um dos principais aromas do espaço: o cheiro forte do café e do chocolate em pó constituíam talvez a principal característica da loja. Em frente aos móveis de madeira havia cestos cheios de grãos de café, nozes e outros frutos secos, onde eu costumava afundar as mãos, desfrutando de uma incrível experiencia com as texturas. Cá fora, a fruta fresca (cerejas, morangos, maçãs...) libertava um aroma de boas-vindas, atraindo os clientes com a variedade das suas cores. Para mim, enquanto criança, tratava-se de uma espécie de “overdose” para os sentidos.
É provável que este tipo de loja já quase não exista, devido à proliferação de centros comerciais que as tornaram insustentáveis, ou substituídas por lojas chinesas que vendem um vasta gama de produtos baratos, graças à grande capacidade de manufactura chinesa.
A China viveu principalmente da agricultura até Deng Xiaoping ter introduzido a política de portas abertas em 1978. Nos anos que se seguiram, a China entrou numa fase de profunda transformação — passando de um país cuja economia se baseava na agricultura ao maior fabricante do mundo — cujos resultados foram maciços e se têm vindo a fazer sentir em todo o mundo desde os anos 90. A China provou assim a sua grande capacidade de transformação e adaptação num período de tempo muito reduzido, tendo-se tornado numa das principais economias à escala global.
Actualmente encontra-se em curso uma nova fase de transformação ligada à era da tecnologia e, se é verdade que o período da manufactura teve um impacto forte no mundo, esta nova transformaçãoo irá seguramente ultrapassá-lo. As novas lojas chineses poderão constituir assim postos de venda de todo o tipo de produtos tecnológicos — com os últimos e mais avançados smartphones, robots ou sistemas de realidade virtual: este poderia voltar a ser, de facto, o tipo de loja que nos activaria todos os sentidos, substituindo as lojas antigas na era da informação.
Como arquitectos a trabalhar na China, projectamos tendo em conta a situação presente e de acordo com as técnicas de construção actuais. Sentimo-nos especialmente entusiasmados, no entanto, com a forma como podemos influenciar o futuro e fazer parte deste, através da investigação e da geração de novas visões para um futuro próximo urbano e para novas realidades arquitectónicas. As industrias imobiliária e automóvel são as mais importantes no actual desenvolvimento e na economia chinesa, e acreditamos que serão estas as indústrias onde se darão mais inovações. Lançaremos proximamente um website onde apresentaremos os resultados desta investigação e visões, através de artigos e suportes visuais.
Acreditamos que através do Design e da discussão especulativa dos futuros urbanos podemos afectar o presente e recuperar a posição de protagonismo dos arquitectos, que se encontrava desviada pelos construtores e pela hegemonia do lucro, e voltar a exercer uma forte influência na maneira como vivemos, nas nossas culturas e sociedades.