Mostra Espanha 2013: Gervasio Sánchez – Niñas (Sarajevo, 1993)
Sobre o sítio onde o mar se acabou e a terra espera, de Pessoa, Saramago profetizou que, lá no Norte, ao meio, os Pirinéus e a Península Ibérica se transformam numa ilha, trazendo agarrada a si Andorra e largando Gibraltar no meio do mar, e fez nascer uma federação com portugueses e espanhóis unidos na diversidade.
A mesma ideia estava nas palavras lidas de forma mordaz por Isaque Ferreira nessa sessão já antiga das Quintas de Leitura, reuniões que o diseur definiu como muito perto dos lugares impossíveis, do inexplicável, da utopia… O poema que nos chamava a Espanha está na Pornografia Erudita de valter hugo mãe, a que se pode colar hoje, a propósito do que é a poesia, um fragmento do seu novo romance, A Desumanização, apresentado numa das últimas Quintas de 2013: A poesia é a linguagem segundo a qual deus escreveu o mundo. Disse o meu pai. Nós não somos mais do que a carne do poema.
Menina Limão: Quintas de Leitura com Pedro Mexia, leituras de Teresa Coutinho, Rita Loureiro e Adriana Faria, música de Ana Deus/Osso Vaidoso e Ricardo Caló/Peixe Graúdo), dança com Olga Roriz, imagem de Menina Limão (2012).
Estas foram apenas duas das já 150 edições das Quintas de Leitura do Teatro do Campo Alegre programadas por João Gesta ao longo de 12 anos de salas cheias e sessões incríveis, números invulgares para um ciclo poético, certamente explicados pela combinação não convencional de escritores, músicos, bailarinos e outros artistas, alguns aqui dados a conhecer, entre valter hugo mãe, José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares, Manuel António Pina, Vasco Graça Moura, Jorge Sousa Braga ou Rui Reininho, Pedro Abrunhosa, Bernardo Sassetti, Lula Pena, Clã, Dead Combo, António Zambujo, O’questrada, Samuel Úria, Norberto lobo, Best Youth ou Vera Mantero, Margarida Mestre, Luís Guerra, Mafalda Deville... só para referir alguns.
Sara Moutinho: Quintas de Leitura com João Luís Barreto Guimarães e Golgona Anghel à conversa com Filipa Leal, leituras de Teresa Coutino e Rui Spranger, música de Joana Bagulho e Miguel Araújo, imagem de Joana Rego (2013)
... e desse sonho ibérico que se lembrou aqui para dar o mote, não seremos hoje mais do que uma breve sucursal da grande corporação a oeste.
Mostra Espanha 2013: Gervasio Sánchez – Centro de detención Tuol Sleng (Cambodja, 2007)
O instante decisivo
E se podemos ser carne do poema, somos definitivamente carne para canhão. E fala-se agora de fotojornalismo puro. A Antologia Gervasio Sánchez mostra o itinerário de 30 anos deste fotógrafo, jornalista e correspondente de guerra, que cobriu de forma independente e inconformada os cenários de guerra na América Latina, Europa, Ásia e África, de 1984 até hoje.
Lê-se algures nas fontes virtuais sobre a norma do jornalista de guerra nunca poder tomar partido num conflito, regra que este fotógrafo desconhecido além-reino-vizinho não cumpre, pois em vez de reportar, denuncia: toma partido das vítimas. Mais do que qualquer palavra, confirma-se a fotografia como a única linguagem capaz de captar, num só instante, a nobreza e a infâmia do ser humano.
Entre a dependência da adrenalina óbvia deste ofício e muito provavelmente a incapacidade de voltar atrás perante o testemunho de tais realidades – o bastante para desconstruir, ou destruir completamente, a capacidade de viver e aceitar o mundo real – o trabalho deste fotógrafo apela à reflexão crítica sobre as consequências desta ordem mundial, designadamente da guerra, no futuro da humanidade.
E, à parte do valor histórico e documental do que é mostrado, pode ser esse mesmo o grande foco: o de ver a cru – não aconselhável a pessoas-com-pouco-estômago, nem a crianças... como lhes poderíamos explicar tal ! – aquilo que optamos por ignorar quotidianamente.
Mostra Espanha 2013: Gervasio Sánchez – Anita Rojas con la maleta de su hijo desaparecido em 1975 (Chile, 2000)
Da palavra afinada à imagem crua, do ideal ibérico ao estado-filial-da-gigante-empresa-anónima, da poesia à fotografia, da evocação ao mundo real, de Portugal e de Espanha, são propostas de agenda para quem não quer viver adormecido.