Sempre fiel companheira de voo
1. Atenas
Há, em Atenas, um bairro onde a polícia raramente se atreve a pôr os pés, e foi exactamente aqui que vim parar. Consta que é um dos bairros mais seguros da cidade, o que poderá parecer contraditório, dependendo do ponto de vista. Com uma elevada taxa de artistas e intelectuais per capita, Exarcheia (Εξάρχεια) tem vindo a desempenhar um importante papel na vida social e política da Grécia: casa de inúmeros grupos anarquistas e antifascistas, constitui um dos principais pólos artísticos e culturais da cidade, tendo sido palco, em 1973, da famosa revolta na Universidade Politécnica.
Psicólogo e DJ, o meu amigo Vangelis Lo vivera no Porto entre 2007 e 2009, e habitava agora precisamente o epicentro do bairro mais efervescente da cidade, no 7º andar de um pequeno e confortável apartamento. A sala encontrava-se, tal como manda a lei, equipada com mesa de mistura e dois pratos Technics, sobre os quais nos acabaríamos inevitavelmente por debruçar, entre farra e festa, durante pelo menos três dias — “Já ouviste esta?”
PLAY: Vangelis Lo — U Have To Be Diggin Mixtape 1
Vangelis Lo no BSF por Michalis
A movida ateniense, enfraquecida que se encontrava pela chegada do Verão, surpreendeu-me ainda assim com uma certa variedade de propostas underground, das quais um fim de tarde passado num bar ao ar livre, a ouvir uma crew de Hip Hop local, a comer salsichas de churrasco e a beber raki (espécie de bagaço turco que actualmente se destila em Creta), constituiu sem dúvida um dos pontos altos. Entre outros antros interessantes, encheram-me as medidas o arejado terraço do Six D.O.G.S. — famoso clube ateniense com uma programação de luxo — o acolhedor Cantina Social e o recém-inaugurado Senza, onde teve lugar a minha primeira actuação em terras helénicas.
Surpreendeu-me igualmente a quantidade de negócios abertos 24h, em especial no bairro de Exarcheia onde, a menos de um minuto de casa, podíamos adquirir, a qualquer hora do dia ou da noite, cerveja de garrafa a estalar de fria, por apenas um euro. E note-se que a cerveja na Grécia é bem mais cara do que em Portugal, rondando normalmente os 2.50€ em qualquer tasco de esquina. Já a água é formidavelmente barata (uma garrafa de meio litro chega a custar tão pouco como 0.50€ num clube) visto o preço ser regulado pelo governo. É portanto pouco provável que passem sede na Grécia, uma vez que em quase todos os negócios de hotelaria se pratica também o costume de oferecer um copo de água aos clientes, à chegada. Mas chega de falar de água.
De Atenas a Lesvos são 55 minutos de avião
2. Lesvos
De Atenas a Lesvos são 55 minutos de avião. Nós fomos de barco. Durante as ONZE HORAS que tardou a viagem, fumámos muitos cigarros e partilhámos o convés com gregos e turcos, famílias de ciganos que montavam o estendal debaixo das escadas, loiros turistas, equipas de basquetebol feminino e artistas de diversas proveniências que, tal como nós, iam actuar ao Beach Street Festival.
Foi nesse barco que tive pela primeira vez oportunidade de trocar umas palavras com Angelos Kouklakis e Van Dalism, ambos DJs de Atenas que se viriam a tornar bons companheiros de festa e viagem. Perante o nosso olhar estupefacto, Angelos contou-nos, entre outras fábulas curiosas, como a polícia de Lesvos se orgulhava de ter, nada mais nada menos, do que o segundo melhor cão farejador de drogas da Europa. Mais tarde, acabados de desembarcar em Lesvos, ainda o Vangelis não acabara um qualquer comentário relativo ao facto de não termos sido sequer mandados parar pela polícia, já nos estava um brutamontes à paisana a arredar para o lado: travaríamos finalmente conhecimento com tão famoso bobi.
Angelos, Van Dalism (escondido) e Gianna (da organização do BSF) por Michalis
3. Vatera
Quando finalmente chegámos à praia de Vatera, onde se realizaria a primeira edição do festival de música e street art, ficámos confusos: a praia era linda, as voluntárias amáveis, mas ninguém parecia possuir uma série de informações essenciais, como aquelas que envolvem senhas de refeições e políticas de bar para os artistas: montámos então a tenda e arrastámo-nos por quinze longos metros até ao Mediterrâneo, onde permaneceríamos de molho até cair a noite.
O mar lá tão longe
Durante o festival, que estava dividido em três áreas, estendidas por uma extensão de cerca de treze quilómetros ao longo da praia, fiquei bem impressionado com certas bandas — como os locais Salia Balia Band, ou os Imam Baildi — bem como com as sessões de alguns DJs, entre as quais destaco, pela qualidade e elegância, a do meu amigo Vangelis, cujo arranque suave cedeu progressivamente lugar a uma pista ao rubro, perfeitamente em forma para o set altamente físico do também grego Echonomist.
PLAY: Salia Balia Band — Gyftopoyla
PLAY: Echonomist @ Proton Radio (Bermudos SoundLab Podcast)
Fulano47 no BSF por Michalis
Bastante em forma estava também o público do Arena Floor para a minha sessão. Acabara de actuar Vas, DJ de Mytilini cujo Deep e Tech House me ofereceram as condições perfeitas para começar, desenvolver e acabar. Eu tinha produzido uma pequena introdução especificamente para o festival, que usei para abrir o set, seguida de uma faixa minha ainda por publicar, e que caiu como ginjas entre um dos públicos mais efusivos para quem tive o prazer de tocar até hoje.
PLAY: Fulano47 - BSF Intro + New Unpublished Track (preview)
DJ Vas e Marina por Michalis
A área mais afastada do festival — Graffiti Area — consistia num hotel abandonado a meio do processo de construção, onde writers de toda a Europa exibiam os seus skills com sprays, rolos, stencil e pincéis, e onde ouvi pela primeira vez o live-act do russo Guvibosch. Tendo vivido vários anos em Israel e residindo actualmente em Berlim, Guvi parecia estar ele próprio ligado ao MPC, atacando-o sem dó nem piedade: o sampler (que era a única máquina que usava no seu live) guinchava como uma fera furiosa, entoando hinos IDM cruzados com ritmos quebrados que não envergonhariam uma qualquer edição da Warp.
Para lá da Graffiti Area descobri o meu sítio preferido do festival: atrás de uma grande rocha, uma passagem íngreme conduzia a uma praia praticamente deserta, apenas habitada por um senhor de idade. Ao fim da tarde, o senhor atravessava a escassa areia para dar um mergulho no mar que praticamente lhe lambia as paredes de casa.
Guvibosch MPC live na Graffiti Area do BSF
Fotos por Guvi
Guvi viera até à Grécia de comboio, na companhia de três amigos — Gloria, Elza e Ruslan. Era a “Berlin Family”, que nos acompanharia durante o resto do festival e com quem nos voltaríamos a encontrar uns dias depois, em redor da Kantina Pantofla, na praia de Pedi, ao Norte da ilha.
Berlin Family na praia deserta, por Guvi VS temporizador
Em frente à área de campismo, do outro lado da rua, o hotel Irini (paz, em grego) providenciava comodidades essenciais como uma piscina, WC e um quarto seguro para guardar malas de discos e outro material sensível. Aí conhecemos a Eleutheria (liberdade, em grego), criatura única que nos apresentou a Dimitris, Nikoletta, Thodoris e Marina, vulgo “The Mytilini Family”.
4. Mytilini
Foi no seio desta família que, após 5 dias de festival, rumámos a Mytilini, cidade e porto principal de Lesvos onde, através do residente Michalis — director da revista Urban Style Mag — actuaríamos num dos mais encantadores e reconhecidos espaços da cidade — Mousiko Kafeneio. Traduzo sempre que posso a amizade além-fronteiras em pratos da minha terra. Foi assim que, em casa de Thodoris e Marina cozinhei, para todos, um jantar português que ficaria para a história da família.
Encontro (espontâneo) de Homens no Barbeiro, em Mytilini: Vangelis, o Barbeiro, Dimitris e eu
A propósito de estômago, é impossível escrever tantas linhas sobre uma viagem à Grécia sem referir também a gastronomia grega. Do Tzatziki (iogurte grego com pepino raspado e alho esmagado) e do Gyros, passando pelos joaquinzinhos em vinagre, pelas saladas gregas, pelas beringelas no forno e pelas Souvlakia (espetadinhas marinadas em pimentão) ao queijo assado e aos Kolokythoanthoi (flores de courgette panadas com queijo ou arroz), cada refeição foi uma feliz descoberta, que começava pelo desafio de decifrar o menu. (Note-se que em Atenas se pode comer bem por menos de 5€, desde que se saiba onde).
5. Pedi
De Mytilini deslocámo-nos ainda a Pedi, onde a Kantina Pantofla — refúgio de Constantinos Pantoflas (pantufas), um dos principais organizadores do Beach Street Festival — nos receberia de braços abertos, e onde o meu telefone decidiria (para variar) permanecer para umas férias prolongadas ad infinitum. Em Pedi voltámos finalmente a reunir-nos com os nossos amigos Glória e Guvi, com quem rodámos discos uma vez mais: a festa, na praia, assumiu contornos de verdadeira extravaganza, regada a raki e com direito a espectáculos de fogo e andas. Creio que nunca apreciei um céu tão estrelado como quando, nessa noite, me deixei flutuar à deriva mar adentro, a festa ao fundo e as pessoas, pequeninas, a dançar à volta da Kantina lá ao longe.
Kantina Pantofla
Pedi por Guvi
6. Ereso
Em algum momento terei voltado eventualmente a terra firme, já que no dia seguinte era hora de regressarmos a Mytilini e nos juntarmos de novo a Thodoris e Marina (ambos DJs também) para rumar ao Oeste em direcção a Ereso, o nosso último destino em Lesvos. Ereso está coberta por bares de praia (mas não daqueles todos brancos e cheios de ângulos rectos que vemos por cá, onde a malta faz sunsets a todas as horas do dia) dos quais o Parasol Beach Bar — famoso, em primeiro lugar, pelos melhores cocktails de sempre e, em segundo, pela passagem de DJs internacionais de renome — era sem dúvida o mais encantador.
Ereso
E foi exactamente no Parasol que Vangelis e eu actuámos pela última vez na ilha de Lesvos, de novo na companhia da família de Mytilini, à qual se juntaram ainda outras personagens de valor com quem nos cruzáramos um pouco por toda a ilha, como foi o caso de Insom Danja, um DJ de Drum'n'Bass que conhecíamos do festival, e com quem já tínhamos armado barraca em Mytilini e Pedi.
PLAY: Insom — Future (Ammunition Recordings)
Ereso é sem dúvida uma das zonas mais bonitas e agradáveis de Lesvos, pelo que por lá nos deixámos pousar mais uma noite. Dormimos na praia, junto a uma fogueira que alguém acendera, e no dia seguinte apanhámos uma boleia de mais uma amiga recente em direcção a Mytilini: com planos de voltar em breve, despedimo-nos por então da ilha, da família, da praia mais deserta, do céu mais estrelado e dos melhores cocktails do mundo.
Os tais
7. Atenas (II)
Da crise, vi pouco. Além de ter passado a maior parte do tempo em Lesvos, onde a vida é simples e o turismo actua como camuflagem para a realidade social, a maioria das pessoas com quem falei sobre o tema não se quis deter muito sobre o assunto, levando-me a pensar que os gregos, no que toca à vida política, são menos de se queixar e mais de agir. Os meus interlocutores demostraram sim uma grande inquietação relativamente à presença do partido de extrema direita — Golden Dawn — no parlamento, e ao apoio demonstrado actualmente por parte das forças de autoridade gregas a este partido de inclinações Neo-Nazis (um dos líderes chegou, em 2012, a esbofetear repetidamente uma deputada de esquerda, em directo na televisão nacional).
Leaving Lesvos
Embora a crise e o enorme fluxo de imigração ilegal constituam terreno fértil para a afirmação dos ideais nacionalistas na Grécia, a tradição anarquista e anti-fascista é aqui muito forte. A verdade é que, desde tempos imemoráveis, a Grécia nunca teve sossego: depois de séculos sob o domínio dos impérios Macedónio, Romano ou Otomano (para citar alguns), foi apenas em 1821 que o país se constituiu finalmente como um governo nacional independente. De novo ocupada pelos Nazis na Segunda Guerra Mundial, e sujeita a uma ditadura militar até 1974 — paragem para tomar fôlego... — a Grécia conheceu então a estabilidade política, pela primeira vez, durante as décadas de 80 e 90.
Banhado pelo Mediterrâneo e mergulhado agora na crise, o povo grego está portanto tão habituado a confrontos e manifestações como a olhar a Acrópole desde as ruas agitadas de Atenas. Com a extrema direita à perna, a situação torna-se ainda mais delicada, e lá retornam os gregos à luta sem ficarem, porém, a carpir penas: com um cocktail molotov numa mão e um daikiri na outra.