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Ascensão, de Rui Chafes

Ascensão, de Rui Chafes

A instalação de Rui Chafes, terceiro passo da exposição Não te faltará a distância, é uma forma de resistência. Em vez de nos dirigir ao chão - que o trabalho de Francis Alÿs, apresentado no passo anterior, explorou -, Rui Chafes faz-nos virar o olhar. Propõe uma segunda forma de acesso à realidade: um caminho de recusa da gravidade natural. 
	
Ao preparar esta exposição, o escultor elegeu as escadas de acesso ao Coro Alto como espaço e motivo imediato do seu trabalho: aí os degraus são estreitos e têm  marcas fundas da passagem dos pés ao longo de centenas de anos de uso. O que falta a esses degraus, essa falha, é sinal do peso do corpo a lutar contra a sua condição natural e querer ascender - e foi essa imperfeição o que interessou ao escultor. 
Rui Chafes fez o molde de cada degrau, guardou a memória da matéria gasta, e trabalhou-a em ferro numa escada de nove metros agora suspensa entre o chão e o teto da Igreja, sem tocar em nenhum deles. Entre o que está próximo e a distância.

Há na obra de Rui Chafes, e na sua profunda reflexão teórica, um cuidado ascético: de quem percebe que a obra pode ser o lugar do silêncio no meio do barulho mediático; uma introdução de aspereza e resistência num mundo em que tudo desliza à superfície e parece transparente; uma poetização do mundo que se opõe à sua aniquilação pelo consumo e massificação; uma estratégia de lentidão e peso contra a aceleração. Forma de resistência. O peso da vida, aquilo que somos e transportamos, não é apresentado em esculturas evidentemente pesadas: elas parecem leves, tantas vezes a flutuar, e fazem-nos repetidamente elevar o olhar, num movimento devedor do gótico – referência importante deste escultor, que tantas vezes demonstra a sua admiração pela obra de Tilman Riemenschneider. Nessa elevação, desvia-se da horizontalidade da escultura minimalista, mas mantém dela 
o rigor.  Esta filiação e desvio percebem-se bem na inesperada escultura suspensa junto ao teto da sacristia - ameaçadora e perigosa -, e na instalação que faz na sala dos túmulos: na escuridão que obriga os nossos olhos a uma lenta adaptação, 
e a atravessar a cegueira para poder ver melhor, uma placa retangular de ferro surge-nos elevada do solo levitando no centro da sala - pensada pelo escultor para o sítio exato onde, depois da sua primeira visita, e sem saber, se descobriu um túmulo do séc. XV. Nessa placa revela-se uma cicatriz - a morte como ferida aberta que transportamos já em vida. Ao lado desta instalação, as marcas da escada gasta são, assim, a manifestação da ausência desses corpos desaparecidos, do povo dos mortais, aqueles que caminham lutando contra a gravidade que nos faz cair. Memória corporal. Em vez de anjos sem peso e ideais, que sobem e descem a escada no sonho de Jacob (Gen 28,11-19), nestes degraus podemos ver milhares de mortais a subir e a descer, assumindo o peso desse corpo como forma de superação de si. Do peso assumido fazemos leveza. Uma memória desse esforço - a escada remete, nas diversas tradições religiosas e místicas,  para a conquista dos diferentes níveis e patamares de elevação intelectual, moral, corporal, espiritual. Uma ascensão exercitada.

Para Rui Chafes, as sua peças não são como objetos, mas talismãs: “tumultos de forças, de dúvidas e de medo”. Estes catalisadores permitem um encontro com o que, segundo o escultor, nos mantém acordados: a consciência da morte. O artista desempenha assim um papel ético, permitindo que outros se aproximem da sua própria autenticidade. Cria emoções ou permite que se aceda a elas. E entre elas 
a melancolia de um lugar perdido, uma distância que a beleza sempre aponta: “acredito que a transcendência não tem outro significado a não ser o de mostrar ou pressentir algo que não está aqui” - afirmou o escultor. Mostrar, sem mostrar, 
que algo falta.

Estas esculturas são fendas no mundo. Vêm desestabilizar a vida habitual, o espaço habitual desta Igreja - como aprendeu com Bresson, é preciso desequilibrar para reequilibrar. Mais do que acrescentar novos objetos ao mundo, ele introduz vazios, falhas - como as abertas nestes degraus imperfeitos. Indica-nos, desse modo, uma distância que não nos faltará - mas, para isso, é preciso resistir ao acomodamento e ao hábito de animais sedentários e ruminantes. Recorda-nos, por vezes de modo violento, para acordarmos e ficarmos de olhos bem abertos, mesmo na escuridão mais impenetrável: a escada, a porta, é estreita (Mt 7, 13).

Paulo Pires do Vale
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