 
	Em tempos remotos, os nossos antepassados, quando interrompiam a sua vida de errância, tinham rituais complicados para escolha dos locais onde iriam viver. Essas provas de amor ao mistério, incluíam a interpretação dos voos de pássaros e do comportamento de animais, a observação de vísceras das presas, tudo actos mágicos que serviriam para legitimar uma escolha e com o delimitar da urbe agradecia-se aos mais variados deuses o benefício que havia sido concedido. E, cada nova alteração do lugarejo, da sua forma e da sua dimensão, implicava novas acções mitológicas. Com o tempo, os elementos defensivos, fossos e muralhas, vieram acrescentar uma nova dimensão, uma espécie de sacralidade granítica, aos lugares Já antes, os povos primitivos sabiam estruturar as aldeias socialmente e sabiam erigir partes que serviam a comunidade como um todo. Diz-se que quando missionários católicos reorganizaram o espaço dos Bororos, povo primitivo do Brasil, edificando as aldeias em séries de casas em filas para-lelas, destruíram a sua organização social baseada numa disposição circular que estava em harmonia com a sua visão do mundo. Hoje em dia, embora as gruas pareçam levantar os seus imensos braços glorificando os céus, os rituais desapareceram e o edificado é obra de investidores e de trabalhadores braçais imigrantes, e o mais parecido com um ritual religioso é o assinar de uma escritura no cartório notarial. Novas cidades crescem na velha cidade, são demolidos edifícios, alguns de grande beleza e importância, para darem lugar a outros, alguns sem grande beleza e sem grande importância. Por vezes, ao escavar a terra e ao quebrar a pedra para criar novas fundações, surgem ruínas de uma antiquíssima construção, ficamos a saber que a cidade viveu de camadas, que se construiu por sobre o que os antepassados construíram. Se nos conseguimos abstrair de todo o ruído, sonoro e visual, da cidade, podemos mergulhar no seu íntimo, se não nos distrairmos com o ruído de uma ambulância que passa guinchando, se desviarmos o olhar do imenso painel publicitário que polui uma parede e não nos deixarmos tolher por esses arabescos tolos e egoístas que corroem os muros, se conseguirmos olhar por sobre o tejadilho de uma dessas carrinhas brancas que pululam nas ruas, talvez consigamos partir para a contemplação da cidade nas suas formas erigidas ao longo dos séculos. Cada fachada remete-nos para uma época e pode mesmo dar-nos o gosto de conhecer essa mesma época, outra remete-nos para o conhecimento da família que a erigiu. Outra, dá-nos vontade de conhecer o arquitecto que a desenhou ou o artista que a decorou. Nuns edifícios ocorreram factos históricos determinantes, noutros ocorreram tragédias terríveis, nuns viveram seres importantes, noutros, pessoas humildes, mas também elas importantes para os seus e para aqueles trabalhos modestos que alimentam uma cidade.
Uma cidade é uma fachada, um conjunto de fachadas, misteriosas, insondáveis, mas, por vezes, uma porta abre-se e alguém convida-nos a entrar, outras vezes, numa janela, alguém inclina-se no seu parapeito e sorri…Alfredo Ireneu Mota