18:00 até às 19:00
João Penalva: Primos

João Penalva: Primos

Grátis
João Penalva
Primos, 2020
Projecção de vídeo de canal único, preto e branco, som, repetição contínua 
Imagem de Jun Kit Boh e de Rafael Ortega 
Som de David Cunningham
16.06. > 15.07.2023



Tantas, tantas coisas

Por diversas vezes, ao longo da sua carreira, João Penalva tem-se socorrido de objets trouvés para dar corpo a um trabalho recorrente de construção de histórias de pessoas comuns e anónimas. São-nos apresentadas como personagens de ficção, surpreendidas em momentos de tensão ou em circunstâncias banais, cujos detalhes da narrativa nos caberá completar tendo em conta o vazio objectivo e, porventura, deliberado, de acontecimentos com que somos confrontados. Estas oportunidades parecem querer sintetizar o seu tempo de vida real no artifício de um tempo expositivo. Recordamo-nos imediatamente, mas não de forma exaustiva, de The Asian Books(1)  e, de entre estes, em especial, de Taipei Story (2007) e de Hello? Are you there? (2009), mas também da instalação Character and player (1998)(2)  e, com particular significado neste contexto, de Men Asleep (2012)(3) .
Contudo, será esta a primeira vez em que João Penalva se socorre de um objet trouvé para a produção de um filme:
 A fotografia a preto e branco 'Primos - dois rapazes a dormir' transporta-nos para uma situação doméstica. No entanto, também poderia ser um local de trabalho que servisse de residência. Dois jovens asiáticos, de calções, adormeceram no chão. Trata-se obviamente de uma cena diurna, pois há luz do sol na sala. Os adereços são um caixote do lixo, uma ventoinha e bancos de plástico baratos espalhados desordenadamente pela sala. Um dos rapazes tem um pé magoado. A partir do canto inferior da imagem, a perna em primeiro plano de uma terceira pessoa sobressai na imagem de forma irritante. A fotografia deixa muito espaço para interpretações(4). 
A esta descrição visual, pormenorizada em tantos detalhes, o que poderemos acrescentar? Que a imagem original foi captada em 2010 por um telemóvel com a resolução desse tempo e que foi posteriormente melhorada? E que o mesmo aconteceu com o registo áudio, trabalhado posteriormente em estúdio, cruzando as conversas gravadas com sons de rua e da natureza? Será importante saber-se que se trata de uma época festiva, no seio de uma família chinesa, reunida em casa da avó, em Mantin, uma aldeia rural do distrito de Negeri Sembilan, na Malásia, para as celebrações do Ano Novo Chinês? E que significado terá saber-se que a avó conversa com uma amiga, em cantonês, e que os dois rapazes deitados no chão são primos?
Estarão mesmo a dormir? O calor e a humidade serão sufocantes? E as conversas em seu redor, misturadas com os ruídos da rua, não os perturbarão? Restará aos espectadores permanecerem em silêncio, cautelosos nas suas figuras de voyeurs (in)voluntários? Ou acabarão por sair, pé ante pé, movidos por um pudor que em si foi crescendo, à medida que o tempo vai passando e a sua intrusão na cena familiar se vai tornando cada vez mais incómoda? 
O que poderá esperar, então, o público? Que os primos se mexam? Que a avó venha chamá-los? Que o fotógrafo Jun Kit Boh se deite também? Que histórias, só suas, não partilhadas, constroem os espectadores na contemplação de uma cena doméstica transformada em espectáculo por via da manipulação da escala das imagens:
Ampliadas a esta escala, passam de um objecto privado de uma colecção pessoal para um bem colectivo que, tal como um cenário de teatro, exige um público colectivo para ganhar vida(5).  
É para um jogo que oscila entre um voyeurismo mediado(6)  e uma contemplação encantatória, porventura de natureza auto-reflexiva, que João Penalva convida os espectadores. Este exercício tinha sido já testado em Men Asleep (2012), colocando-os, então, diante da fragilidade desprotegida dos que dormem, dos que não sabem que estão a ser observados e que, por isso mesmo, não podem impedir essa mesma observação e a perturbação intrusiva da sua intimidade. Tema que se encontrava também presente em Sumiko (2009) e em As if she could see him (2011), embora nessas obras, por decisão do artista, o pudor das personagens impeça ostensivamente o voyeurismo do público, gesto que, ao invés, é levado ao paroxismo na instalação Door (2018)(7) , com João Penalva a convidar que se espreite por um buraco numa porta, como se de um peep show se tratasse. 
Embora noutro contexto, e a propósito de outra obra, escrevi acerca de João Penalva e do seu processo criativo:
Penalva estimula constantemente as capacidades do espectador. Toda a informação está disponível, escondida ou não, mas a descoberta depende das possibilidades de cada um e, inevitavelmente, da sua herança cultural(8). 
Enquanto espectadores encontramo-nos, de novo, perante um desafio sedutor proposto pelo artista. Se aceitarmos o seu convite, poderemos (re)descobrir de que modo vemos e ouvimos o que nos rodeia e, dessa forma, melhor compreender os nossos contextos, mas também revisitar as histórias e os fantasmas que nos definem e que transportamos sempre connosco.


Primos, de João Penalva foi apresentado pela primeira vez, em 2020, na XXV Rohkunstbau, uma exposição que se realizou no Schloss Lieberose, no Estado da Brandemburgo, na República Federal da Alemanha.


Lisboa, 28 de Maio de 2023
Carlos Vargas








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(1) João Penalva. The Asian Books. Luxemburgo: Mudam, Musée d'Art Moderne Grand-Duc Jean, 2018.
(2) João Penalva. Character and Player. Innsbruck: Galerie im Taxispalais, 2000. A instalação Personagem e Intérprete foi adquirida em 1999 pela Colecção IAC, Ministério da Cultura, Portugal, integrando actualmente a designada Colecção do Estado.
(3) Men Asleep, 2012. Dupla projecção de diapositivos de 35 mm com sistema de dissolução controlado por sinais gerados em tempo real, som com surround, cortinas e mobiliário, 112'8". João Penalva. Trondheim: Trondheim Kunstmuseum, 2015, pp. 118-127.
(4) Em 2020, o XXV festival Rohkunstbau foi apresentado sob o lema "Zärtlichkeit/Tenderness. Vom Zusammenleben/About Common Living.", com curadoria de Heike Fuhlbrügge. [https://www.rohkunstbau.net/joo-penalva-2020].
(5) Katherine Stout. In João Penalva. Coventry: Mead Gallery, 2007.
(6) Clay Calvert. Voyeur Nation. Media, Privacy and Peering in Modern Culture. Boulder, CO: Westview Press, 2004.
(7) João Penalva. Door (2018). Projeção de dois canais de vídeo, 140", cor, som. Mudam, Musée d'Art Moderne Grand-Duc Jean, Luxemburgo.
(8) Carlos Vargas. "João Penalva and the spirit of storytelling." Metakinema, 16, Abril de 2015. [http://www.metakinema.es/metakineman16s5a1_Joao_Penalva_Harangozo_Carlos_Vargas.html].


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