Fotografia de Doug Seymour
Referi-me recentemente a Lloyd Cole num artigo sobre o Porto que escrevi para o projecto de arte sonora e escrita de viagem Sound Escapes. De facto, continuo a identificar o inverno da Invicta com o som de pneus a deslizarem temerariamente sobre o paralelo molhado das travessas que descem das Virtudes para Miragaia, sobre o fundo de uma velha cassete assombrada pelo Lloyd Cole ou pelos The The. Curiosamente, descobri hoje numa entrevista do artista ao The Guardian que, algures em Tribeca, em Nova Iorque, Cole ensaiara num pequeno estúdio localizado no mesmo edifício do estúdio de Matt Johnson, vocalista dos The The.
Assombração ou sangue na guelra, Lloyd Cole foi sempre uma presença assídua na banda sonora da minha vida: desde a preparatória — onde se me revelou por entre os primeiros CDs do Luís, o meu colega de carteira — às noites chuvosas em que uma cassete da mãe da Marisa acabou em repeat no rádio do meu carro, até à colecção de discos que acabei por ir adquirindo nas Ladras e Vandomas desta vida.
Fotografia de David Sims
Será portanto compreensível que, depois de um verão em alta-rotação de trabalho — absolutamente obstinado com a fundação de uma Casa das Artes de Aveiro que começa já a ganhar forma — tenha decidido não ir de férias senão no dia seguinte ao concerto de Lloyd Cole no Teatro Aveirense.
Embora Cole nos tenha visitado incontáveis vezes nas últimas décadas, eu já não o via ao vivo desde 1996 quando, à volta de um concerto de Smashing Pumpkins no Cascais Arena, o Abelha e eu pedimos ao condutor do autocarro que nos deixasse em Coimbra para, em plena Queima, assistirmos aos concertos dos Clawfinger e do músico britânico. Imagino que por essa altura estivéssemos bem mais interessados nos Clawfinger e em toda a cerveja que nos fosse humanamente possível ingerir, mas já não me lembro muito bem.
No Teatro Aveirense, Lloyd Cole foi recebido por uma sala bem recheada de entusiasmo revivalista, o que faz todo o sentido, sobretudo se tivermos em consideração que a tour em questão girava em torno de faixas compostas entre 83 e 96. Arrancando com "Patience", as minhas expectativas viram-se quase inteiramente preenchidas logo ao terceiro tema, "Rattlesnakes", seguido do incontornável "My Bag".
Sempre me tocaram mais álbuns como "Rattlesnakes" e "Mainstream" concebidos durante o período em que Cole contracenou com os The Commotions, formação que abandonaria em 1990 para arriscar uma frutífera carreira a solo. Assim, o resto da primeira parte do concerto não me disse muito, tendo desfrutado um tanto ou quanto à deriva de uma paisagem sonora apenas vagamente familiar, pontuada pelas breves mas notáveis tiradas de humor com que o músico se ia aproximando progressivamente do público.
Fotografia de Peter Anderson
O intervalo fez-se anunciar com a tão aguardada "Jennifer She Said", e a segunda parte viu subir ao palco o filho já crescido de Lloyd Cole, William, que o acompanharia na guitarra durante o resto do concerto e que contribuiria fortemente para a densidade sonora do espectáculo. Protagonizada por faixas como "Mr. Malcontent", "Are You Ready To Be Heartbroken?", "Charlotte Street" ou "Perfect Skin" a baterem lá bem alto na escala de Richter, a segunda metade do concerto foi uma fartura de clássicos: todo um regalo.
À medida que os temas se sucediam porém, comecei a duvidar que os Cole fossem tocar a "Forest Fire" e, quando por fim o pai anunciou a última música com "Brand New Friend", temi pelo pior — Parece impossível... Felizmente é exactamente para estas situações que serve o velho e bom encore, e o músico — fofinho — fez-me finalmente a vontade, encerrando assim a actuação com as devidas relações intensas e incêndios florestais.
Vim mais tarde a constatar que, por entre as composições do músico nos últimos anos, se encontravam vários trabalhos puramente electrónicos, entre os quais uma colaboração com o pioneiro da música experimental alemã Hans-Joachim Roedelius. Relativamente ao facto de ter abandonado o computador para se entregar (de novo) às máquinas (neste caso aos sistemas modulares), Cole explica — “Senti que passava demasiado tempo à frente de computadores: a minha correspondência, a minha agenda, as minhas finanças e uma grande parte da minha música era feita em computadores. Queria passar menos tempo à frente do ecrã.” — Não pude deixar de me identificar absolutamente.
Quando saí do concerto chovia a cântaros. Não estava no Porto, não se ouviam os pneus do meu carro a deslizar no paralelo molhado, e as travessas eram outras, mas tudo batia certo: o humor subtilmente sarcástico de Lloyd Cole, as suas pequenas anedotas e reflexões sobre a idade, os acordes da sua guitarra a ecoarem-me ainda nas entranhas como uma aguardente velha em copo de balão aquecido. Sem dúvida o melhor incêndio florestal do ano.
Fotografia de Kim Frank