“Gone Home” (2013) de Steve Gaynor é um videojogo em primeira-pessoa que se socorre apenas do espaço para contar a sua história. Assumimos o papel de Kaitlin, acabada de voltar de uma viagem de um ano há Europa. Não está ninguém em casa, os nossos pais foram passar o fim de semana fora para comemorar o aniversário de casamento, e quem devia estar em casa para nos abrir a porta era a nossa irmã mais nova, Samantha. Esta por sua vez, também não está em casa, tendo deixado um bilhete na porta dizendo que tinha partido, e que não a procurassem. O videojogo começa assim como uma viagem exploratória através de uma casa vazia, que ainda não conhecemos, já que os nossos pais se mudaram para ali há muito pouco tempo, após terem recebido aquela casa como herança de um tio do pai.
Ao entrar na casa, começamos a perceber que o momento representado, não é o da atualidade, mas remonta aos anos 1990. Começamos a explorar a casa, e a procurar indícios que nos possam explicar algo mais sobre o que terá acontecido com a nossa irmã, porque se terá ido embora?
Exposto tudo isto, e já dentro do jogo, é natural assumir que o personagem principal da história que “Gone Home” nos apresenta, é Samantha. Passou-se algo com ela, e nós temos que descobrir o quê, o que a terá levado a tomar uma atitude de fuga? Contudo, quando acabamos o jogo e refletimos sobre o todo, percebemos que existe aqui muito mais do que o desvelamento íntimo de uma personagem. A narrativa está desenhada de forma rizomática, partindo do bolbo, que é aqui a casa, cada personagem desta família despoleta o seu fio de história nas direções mais diversas. E todos esses fios de histórias possíveis são desenhados de modo a dar suporte, ou seja a conferir sentido ao todo. O personagem principal em “Gone Home” acaba por ser assim a própria casa.
Mas este “todo”, ou a casa, não se fundamenta apenas num conjunto de histórias avulso dos diferentes personagens que a habitam. “Gone Home” utiliza o modelo narrativo de duplo enredo, que apresenta duas linhas narrativas maiores, que ao longo da história se vão entrelaçando para complexificar e densificar o tecido de eventos desse todo. A primeira linha é a de Samantha, amplamente citada pela crítica, e pelas dezenas de blogs que se identificaram com a personagem. Diga-se que a saída do armário de uma adolescente americana nos anos de 1990 não é propriamente a coisa mais comum, apesar do jogo tudo fazer para nos colocar no quotidiano banal de uma família de classe-média americana. Aliás e em parte, muito do sucesso que o jogo tem granjeado deve-se a esta linha da narrativa, ainda muito pouco usual no meio dos videojogos, porque capaz de falar de uma franja social de uma forma que a restante comunidade entenda e se consiga identificar emocionalmente, ainda que não se enquadre nessa franja.
O segundo enredo é mais pesado e talvez por isso tenha sido desenhado de modo menos evidente, nomeadamente para quem passa pelo jogo uma primeira vez apenas. Um fio de história que parte do pai, Terry, e da sua relação com o seu tio, Oscar, o antigo dono e construtor daquela casa. Para quem se dedicar a escavar a história da casa, e daquela família, começará aos poucos a perceber que Terry não é o mesmo desde que se mudou para ali. Provavelmente isso poderá ter alguma ligação com algo que se terá passado na sua relação em criança com o seu tio. O próprio desenho peculiar da casa, parece ter alguma coisa a ver com as amarguras e sentimentos do tio Oscar, e é através desta que começamos a percepcionar o cruzamento dos enredos de Samantha e Terry. Ou seja, quando muita da crítica se interroga, e apresenta por vezes como um erro de geração de expectativas, o facto do jogo ser introduzido num tom de thriller/horror, acredito que tenham passado pelo jogo apenas a correr, e se tenham prendido apenas sobre a evolução positiva do enredo de Samantha.
Apesar de usarmos aqui a expressão jogo, fazemo-lo porque se trata de um videojogo, mas “Gone Home” tem muito pouco de jogo em si, é mais uma experiência interativa de exploração do espaço, no qual as regras e objectivos são praticamente inexistentes. Nesse sentido “Gone Home” sustenta-se completamente sobre o desenho do storytelling espacial, ou de ambiente, o que não é nada fácil de desenhar. Nomeadamente, como relatámos anteriormente, a forma como o receptor acede à história, não garante sempre a passagem de toda a informação necessária à compreensão da narrativa. Aqui os personagens só podem existir em função das evidências que o espaço nos oferece. Não existe uma conexão imediata com os mesmos. Apesar disso, e tal como no rádio-drama ou nos diários escritos, é possível fazer surgir as vozes em áudio ou texto dos personagens, de formas por vezes bastante fortes na ilustração dos seus sentimentos. Por outro lado, o desvelamento espacial é por norma não-linear, ou seja as peças que vamos encontrando e vão fazendo progredir a narrativa, não surgem por uma ordem pré-determinada. Podemos começar por subir de imediato ao primeiro andar, e começar aí a procurar os indícios, e só depois voltar ao rés-do-chão. Sendo uma casa vazia, e não usando subterfúgios de jogo, não é fácil criar artifícios que linearizem o surgimento dos objetos.
Em jeito de conclusão, “Gone Home” é um trabalho brilhante de narração espacial, que apesar de parecer ter uma duração curta, não se esgota numa única viagem pelo espaço. Para se ter acesso completo à história que nos é contada, precisamos de lhe dedicar algum tempo, explorando e ligando os indícios, procurando nos detalhes as respostas para as várias interrogações que vão surgindo. O espaço em “Gone Home” permite-nos interagir com praticamente todos os objetos e podemos abrir todas as portas, mas não basta olhar, ligar as luzes e avançar para o próximo espaço. A experiência requer de nós algo mais do que o simples observar e interagir, requer algo que os jogadores ainda vão tendo alguma dificuldade em saber lidar, a contemplação.