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Hasta la Vista Baby

Vítor Rua
Na actualidade, é através da publicidade, das séries televisivas, dos cartoons e dos filmes, que grande parte das pessoas escuta um certo tipo de sons musicalmente organizados que não ouviria noutras circunstâncias. Este texto aborda a manipulação subliminal desenvolvida em alguns géneros cinematográficos e audiovisuais, bem como a importância da sonoplastia no cinema e na publicidade.


1. Legitimated, Middlebrow & Popular taste


Segundo Pierre Bordieu [1], o gosto do público pelo cinema, está intimamente ligado ao seu estrato social e background. Bordieu classifica esse gosto em três categorias diferentes, sendo a primeira o legitimated taste (alguém que escolhe prioritariamente ver Bergman ou Kubrick) e acredita que as pessoas que afirmam ter este tipo de gosto são mais compatíveis socialmente com as classes dominantes. A segunda categoria por ele considerada é o gosto middlebrow, uma média entre dois extremos e tido como o lado legitimado de um cinema mais popular. A terceira categoria considerada é o popular taste, e aplica‐se a pessoas que gostam de um certo tipo de cinema, consoante aquilo que a TV lhes dá a visionar. Alguns chamarão a esta última categoria, um gosto não‐refinado. Seguindo o pensamento de Bordieu, ele acredita, por exemplo, que os professores interagem melhor com crianças que possuem o gosto "legitimado" e, que o gosto de cada um está ligado às classes sociais. Assim, na sua perspectiva, quanto mais alta for a classe social de um estudante, mais possibilidades ele tem de vir a ter sucesso escolar. No entanto esta categorização das classes sociais já vem de trás.

Dwight MacDonald, parte da distinção de três níveis intelectuais, high, middle e lowbrow (distinção que deriva daquela entre highbrow e lowbrow, (proposta por Van Wyck Brooks, em America ́s Coming of Age), mudando-lhes a denominação de acordo com um intento polémico mais violento: contra as manifestações de uma arte de elite e de uma cultura propriamente dita, erguem‐se as manifestações de uma cultura de massa que não é tal, e que por isso, ele não chama de mass culture, mas de masscult, e de uma cultura media, pequeno burguesa, que ele chama de midcult. (Eco 2005:37)

Para os pertencentes à terceira categoria (popular taste), é apenas numa certa publicidade, séries, cartoons e nos filmes, que ocorre a oportunidade de escutarem certo tipo de música, ou seja, no medium que Bordieu refere como sendo o formador do gosto desses indivíduos: a TV.

O que se pode então ver e ouvir na televisão nos dias de hoje, que permita aos espectadores do popular taste um “vislumbre” do legitimated taste? É sobre isso que reflicto em seguida.

 


2. 2001 Odisseia de Sons Organizados


Um indivíduo pertencente à categoria do popular taste, que sintonize um canal de TV prestes a emitir o filme de Stanley Kubrick, 2001 Odisseia no Espaço, assistirá a uma obra-­prima do cinema e ouvirá uma miríade de composições musicais que, noutras circunstâncias não veria nem ouviria. A exemplo, o filme inicia com a palavra Overture enquanto se ouve Atmosphères do compositor György Ligeti, de seguida, no genérico da MGM, ouve‐se a obra de Richard Strauss Also Sprach Zaratustra. Embora durante a Alvorada do Ser Humano a música seja inexistente – apenas com uma sonoplastia concretista constituída de sons da natureza, vento, pássaros e ruídos dos antropóides –, com a aparição do monólito surge de novo a música de Ligeti. Também a descoberta do osso de um animal como arma (símbolo de poder), faz regressar a música de Richard Strauss. Na continuação, o homem‐macaco atira o osso ao ar – e quando este começa a descer e se transforma numa nave espacial que desliza em silêncio sobre a tela, com o zoom da câmara sobre a nave –, surgem as primeiras notas do Danúbio Azul de Johann Strauss Jr.. Posteriormente, quando uma nave passa sobre a Lua, ouvimos em surdina o coral Lux Aeterna, de György Ligeti. Já na Lua, os astronautas aproximam-­se do monólito e retorna – como num leitmotiv – a música Atmosphères de Ligeti. Num outro momento, uma nave voa em direcção a Júpiter e escutamos a peça da Suite Gayaneh, de Khatchaturian. Ainda para a palavra Entreato, Kubrick reserva a música de Ligeti, que acompanha todo o processo do desligar do computador Hal, bem como toda a cena rumo ao infinito. No final do filme, numa espécie de eterno retorno, surge de novo o tema Also Sprach Zaratustra.

Como pudemos constatar, este filme contém música dita clássica/erudita normalmente enquadrada nas categorias do legitimated e middlebrow taste de Bordieu. É assim, que assistindo a apenas um filme e no conforto das suas casas (através da TV), indivíduos pertencentes à categoria do popular taste usufruem, mesmo sem o saberem, de compositores integrados no legitimated e middlebrow taste – como é o caso de Johann e Richard Strauss, Ligeti e Khatchaturian. Podemos com pertinência interrogar-­nos: “Em que outras circunstâncias poderiam ouvir Ligeti nas suas vidas?”.

Escolhi a obra 2001 Odisseia no Espaço, de Kubrick, por ser um caso paradigmático no uso de música clássica/erudita no cinema.

 


3. Psycho Killer


Uma mulher toma um banho de duche e conseguimos ver, através da cortina de plástico, um vulto que se aproxima. Só se ouve o som de água a correr. Uma mão em vulto puxa a cortina e ouve-­se o som das argolas de plástico a deslizarem no metal. A mulher finalmente vê o homem e grita. O homem empunha uma faca e começa a esfaquear a mulher que grita de dor e diz “No!”. Ouve-­se o som da faca a penetrar na carne vezes consecutivas. A água continua a correr. O homem pára de esfaquear a mulher e sai de cena. A mulher, já em silêncio e quase sem vida, escorrega e tenta agarrar-­se à cortina arrancando-­a. Ouve-­se o ruído das argolas a soltarem-­se da vara de metal e o ruído do plástico. A mulher cai no chão sem vida sob o ruído da água a correr.

A cena acima relatada é a mítica cena do chuveiro do filme de Hitchcock, Psycho, mas este relato descreve apenas os sons concretos, ou seja, a sonoplastia do filme. Porém, na realidade esta cena é acompanhada de música. A música que entra no preciso momento em que o vulto abre a cortina com a faca na mão e acompanha toda a cena do esfaqueamento, é constituída por uma instrumentação de cordas em staccato com um som estridente agudo repetitivo. Somente quando o assassino se retira a música muda de ambiente: em tom dramático ouvem-­se dois acordes que se mantêm repetitivamente durante o deslizar do corpo da mulher; inicia-­se então um rallentando sobre os mesmos dois acordes até ao momento em que a mulher se agarra à cortina, nesse instante a música pára para ficar somente o som concreto da água a correr.

Assistir a esta cena sem música ou com música é tão distinto quanto beber água ou beber vinho, isto é, é totalmente diferente! A força dramatúrgica que a música de Bernhard Hermann transmite a esta cena é tal, que se assistirmos à mesma cena mas sem a música, uma das cenas mais representativas do suspense hitchcokiano quase se transforma numa cena banal. A música de Hermann sublinha de forma exemplar quer a surpresa e o horror que são visíveis no rosto da vítima, quer o ritmo e a cadência das facadas. Esta cena revela o poder que a música pode assumir na diegese cinematográfica, ampliando e enformando a dramaturgia imagética.

 


4. Private Jokes


No filme de Kubrick anteriormente analisado, 2001 Odisseia no Espaço, o nome do computador protagonista é Hal. Ora, se a cada letra do nome Hal, acrescentarmos a letra que lhe vem imediatamente a seguir no alfabeto, obtemos o seguinte:

H+ (a letra seguinte no alfabeto) = I A+ (a letra seguinte no alfabeto) = B L+ (a letra seguinte no alfabeto) = M

IBM. Ora, IBM é o nome de uma conhecida marca de computadores (uma das únicas da altura e a mais conhecida do público). São raras as pessoas que se apercebem desta curiosidade a qual foi sempre desmentida pelo autor do romance, Arthur C. Clarke [2]. Mas a probabilidade da relação do nome do computador com a referida marca ter acontecido acidentalmente é de um para um milhão. Assim, e segundo a análise de Rob Ager, poderemos afirmar ter sido um acto propositado e não assumido apenas porque terá havido um desentendimento com a empresa IBM relativo ao patrocínio de parte do filme [3]. Sendo então do desconhecimento do público e desmentido pelos próprios autores, este facto funciona como uma private joke, entendida somente por alguns.

Na música para cinema existem muitos outros casos de private jokes. Um dos exemplos mais paradigmáticos está presente em Blade Runner, de Ridley Scott, cuja música foi composta e interpretada por Vangelis. Neste filme, e sem querer pormenorizar a análise do argumento, os replicants – construídos pelos humanos para os substituírem na execução de tarefas –, são fabricados com uma idade específica e um prazo de vida estipulado pelo construtor, mas com a implantação de uma memória que lhes permite aceder à simulação de um passado, que julgam real. Concomitantemente, a palavra “memory” surge várias vezes ao longo no filme. Sempre que tal sucede, ouve-­se uma música específica – uma voz cantada – que funciona como leitmotiv sempre que a palavra “memory” é pronunciada. Ora, coloco aqui a hipótese – a que cheguei após muitas audições –, de que essa voz seja a voz do cantor Demis Roussos [4] mas em tape reverse. Na minha perspectiva, Vangelis estabelece assim uma relação entre a sua própria memória, o seu passado musical – já que na sua juventude Vangelis fez parte do grupo Aphrodite Child, do qual fazia igualmente parte Demis Roussos – e a ausência real de memória dos replicants, de forma que, durante todo o filme, se alguém diz a palavra "memory", essa voz recorrente do passado, surge. Sintomaticamente este não é um facto evidente para um qualquer espectador de Blade Runner, contudo esta mensagem subliminal pode ser encarada como um exemplo do que designo de private joke. Uma meta-­memória.

Encontramos um outro exemplo, agora no território da sonoplastia, em Frenzy, de Hitchcock: numa cena em que se vê um carro a subir uma montanha até ao cimo, mas onde o som do motor do carro diminui de volume à medida que este se vai aproximando, em vez do que seria suposto acontecer – aumentar de volume. Ou seja, encontramos aí um crescendo em vez de um diminuendo. Este caso pode ser entendido como mais uma das muitas private jokes a que Hitchcock nos habituou, no entanto, sendo este facto aparentemente óbvio, provavelmente poucas pessoas se apercebem desse engenhoso e contraditório efeito Dopller.

 


5. O Automóvel Coro


É igualmente na publicidade, que indivíduos pertencentes ao popular taste podem ouvir certos tipos de música que noutras circunstâncias nunca ouviriam. Vejamos um exemplo de música vocal contemporânea e original, composta com o objectivo específico de promover um automóvel Honda e transmitido em todas as televisões nacionais e mundiais: numa garagem um coro e um maestro assistem a uma projecção do automóvel ora parado ora em movimento, sendo que o coro mimetiza todos os sons produzidos pelo automóvel: o motor, o vidro eléctrico a descer, o vento, a chuva, o leitor de CD’s, o limpa-­vidros. Tudo só com a voz! Similarmente, e no território da música dita “culta”, na composição Stripsody de Cathy Berberian [5], a partitura pictográfica substitui os tradicionais símbolos musicais por desenhos de animais, vento, super-­homem, máquinas, e a voz mimetiza todos esses sons.

No seu procedimento, estes dois exemplos, um do popular taste outro do legitimated taste, são muito semelhantes, num caso o coro mimetiza os sons associados ao automóvel e no outro a intérprete mimetiza sons da Natureza.

Em conclusão, os espectadores que normalmente não teriam oportunidade de ver ou ouvir a obra da Cathy Berberian, ainda que de tal não sejam conscientes, têm-­lhe neste anúncio acesso. Por seu turno, os espectadores do anúncio da Honda vivem uma experiência sonora próxima dos ideais da chamada música concreta e ao mesmo tempo podem ter um glimpse do que é a escrita vocal coral da nossa Era. Enquadra-­se assim uma certa contaminação do território do legitimated taste ao do popular taste.

 


6. Tom & Jerry versus Black & Decker


Além do cinema e da publicidade, é ainda nos cartoons que se oferece ao popular taste e middlebrow a oportunidade de ouvir, por exemplo, música concreta: o som de uma porta a bater, o lavar dos dentes, uma janela a partir, o som do vento, da chuva, o som de um automóvel a derrapar, tudo isto são exemplos de sons concretos. A técnica e os métodos utilizados podem variar, nuns casos os sonoplastas podem recorrer a sons pré-­existentes de uma qualquer sonoteca, noutros, recorre-­se à bruitage. Tal como na música acusmática, onde não sabemos de onde provém o som, nos cartoons, o som de uvas a caírem no chão é realizado pelo bater das unhas numa lata de espinafres. Ao nível musical, também nos cartoons encontramos uma variedade de estilos, desde imitações a la Beethoven até à música hip-­hop série B. Deste modo, grande parte da força diegética dos cartoons reside na sua sonoplastia.

 


7. James Last [6] but not the Lizt [7]


Se as letras impressas deste artigo fossem aparecendo gradualmente acompanhadas de sons diversos (e.g. gato a miar, porta a ranger, derrapagem, buzina, nota de vibrafone), e se se tratasse de um anúncio a uma impressora ou a um computador; ou se fosse o início de um filme no qual um plano de mãos que escrevem é acompanhado do som das unhas e dedos a bater nas teclas; ou ainda, se se tratasse de um cartoon onde as letras com vida própria dançassem sobre a folha de papel ao som do rabiscar de uma esferográfica, qualquer um destes casos seria exemplo de sons organizados, ou seja, música, e neste caso concreta. Estes são exemplos musicais, que a popular taste normalmente nunca ouviria noutras circunstâncias. Assim, quando se desliga o volume nos intervalos dos anúncios da TV, ou quando se ignoram certos cartoons ou filmes, alguns espectadores estão a perder a oportunidade de se aproximarem musicalmente do legitimated taste, uma vez que geralmente não frequentam concertos de música acusmática/concreta ou ambientes especificamente dedicados a esse tipo de música, nem ouvem CD’s desses estilos musicais.

 


Vitor Rua acerca de Hasta La Vista Baby

 

 


 

Referências Bibliográficas


Bourdieu, Pierre. 2010. A distinçãoUma crítica social da faculdade do juízo. Lisboa: Edições 70.

Cathy Berberian Stripsody, for solo voice, 1966. Edition Peters.

 

Sites


Dawn of Hal: History of Artificial Intelligence, Dr. Arthur C. Clarke Interviewer, Dr. David G. Stork”, acedido em 23.07.2010.

Kubrick: and Beyond the Cinema Frame”, acedido em 23.07.2010.

2001: A Space Odyssey – How Stanley Kubrick used Hal to depict IBM”
, acedido em 23.07. 2010.


 

Notas de Rodapé

[1]  Na sua obra, A distinção — Uma crítica social da faculdade do juízo, edições 70, Lisboa, 2010.

[2] Nomeadamente em “Dawn of Hal: History of Artificial Intelligence”, Dr. Arthur C. Clarke Interviewer, Dr. David G. Stork”, acedido em 23.07.2010.

[3] Em análise de Rob Ager, “Kubrick: and Beyond the Cinema Frame”, acedido 23.07.2010

[4] Cantor da chamada música “ligeira”.
[5] Cathy Berberian Stripsody, for solo voice (Edition Peters, 1966).

[6] James Last (1929), nome artístico de Hans Last, é um compositor, arranjador e regente alemãoe.g..

[7] Franz Lizt (1811-­1886), compositor e pianista húngaro.
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