Enquanto espectáculo, o cinema nasceu na balbúrdia da feira, entre o homem músculo e a contorcionista. Esse magnífico feito e defeito de nascença, esse parto num cenário de cultura popular – que não no quadro das raras artes e musas – deixou marcas importantes no seu mais que centenário corpus. Coube ao cinema narrar sem esculpir frases, descrever sem pintar a macaca e a manta da sintaxe escrita, retratar, referir, resumir, representar, etc., sem recorrer ao capital acumulado das figuras de estilo, coube-lhe dizer a quem não tinha instrução, contar a quem não tinha conta bancária, recordar a quem não fora concedido o tempo de fabricar memória. Sabe-se que o cinema não nasceu no silêncio. O barulho das máquinas de projectar, o espesso burburinho dos locais de projecção não domesticados e os acompanhamentos musicais desde muito cedo acrescentados às imagens – para já não falar dos sons internos aos planos, sejam eles o comboio a entrar na estação, a gente a caminhar e conversar, o cão a ladrar, o bebé a chorar, o polícia a apitar... – invalidam o conceito de «silent movies». Donde a relativa justeza da oposição mudo/falante, para distinguir o cinema sem palavras daquele que recorre aos diálogos, colocando-os demasiadas vezes no centro de uma dramaturgia visualmente frágil. Este pequeno ciclo, a que foi dado o título de MUDO – «mudo» é o mundo a que falta o N, eu mudo, tu mudas, ela muda, etc. –, apresenta-se como um regresso às fontes, através de filmes realizados por pioneiros que inventaram o cinema como forma de expressão artística, mas também como vigoroso lembrete de filmes de elevadíssimo valor poético e político cujos realizadores prescindiram, num tempo em que a esmagadora maioria dos filmes era desde há muito falante e frequentemente verbosa, do recurso à palavra, O ciclo fecha com um programa de três obras pouco expectáveis, que serão fonte de inspiração concreta – partitura visual, digamos – para peças musicais inéditas interpretadas na última sessão. Regina Guimarães, Janeiro de 2020 Nesta sessão, apresentamos OS HABITANTES (1970, 10') e AS ESTAÇÕES (1975, 29') de Artavazd Pelenchian. Entrada livre.