18:00 até às 21:00
Sobre as águas de Anabela Maravilhas

Sobre as águas de Anabela Maravilhas

Anabela Maravilhas  (1979, Lisboa) tem agora a sua primeira individual no Módulo mostrando um conjunto de quimigramas.

Sobre esta série de trabalhos escreve Tomás Maia: 
Pairar sobre as águas

Tudo no mundo começou com um sim. 
Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida.
Clarice Lispector, A Hora da Estrela

A vida é uma coincidência, e o que importa na vida, como dizia o mestre Houang-po, é a «silenciosa coincidência». 
Uma tal coincidência implica duas condições: a existência de (pelo menos) dois elementos, e a sua coexistência no mesmo espaço e ao mesmo tempo. Em química dá-se-lhe o nome «combinação», e podemos dizer que esta é uma pura combinação porque nada a fazia prever na névoa da não-vida. A névoa é tudo o que paira à volta da coincidência da vida — e é logo perceptível no espectro das estrelas brancas: aí observam-se as primeiras combinações químicas, quer dizer, as primeiras reacções entre dois elementos (carbono e hidrogénio) que estiveram e estão na origem da vida. 

Mas se a vida é uma coincidência, cada ser vivo, para poder viver, descoincide consigo mesmo. Só há absoluta coincidência no instante da fecundação e no instante da morte. Mas isto quer dizer que a fecundação e a morte são a mais pura negação do mesmo (ou do em-si): na fecundação há um dois que me é absolutamente anterior, na morte há um uno que me é absolutamente alheio. A absoluta coincidência é invivível para o si de duas maneiras: porque este ainda não vivia ou porque já estará morto. 
Ser vivo é ser ritmo, pulsação, batimento, diferimento, distância, repetição e diferença, inspiração e expiração, anabolismo e catabolismo. Ser humano é sentir em si mesmo, e em toda a complexidade, a descoincidência do vivo e a coincidência da vida.

Vivemos porque resultamos de uma combinação que provém de combinações, de combinações… de uma coincidência primitiva. Se eu vivo é porque coincido com algo ou com alguém, mas jamais comigo mesmo. O «eu» ou o «si» não é senão a coincidência com o que me atravessa ou me trespassa.
Mas o ser humano — mesmo aquele a que Nietzsche chamava o «espírito livre»: aquele que se despojou de tudo quanto é metafísico e que, ainda assim, é visitado pelo «sonho da imortalidade no coração» (Humano, Demasiado Humano, § 153) —, sim, o ser humano, à falta de poder viver a coincidência em si, encena-a para si mesmo. Criar é representar a imemorial coincidência da vida, é jogar à pura coincidência. Jogar à fecundação e à morte: à morte fecunda. E é isso a arte — pôr em cena o jogo da vida universal.

Uma das formas mais elementares de jogar à coincidência é a de inventar sinais com a própria química: é fazer quimigramas! Antes de se estabelecer a ordem de uma vida, antes de se fixar a regra desta ou daquela forma viva, em suma: antes de qualquer gramática vital, há isto — isto que só a arte pode mostrar: o jogo dos grammas. O jogo dos caracteres, dos sinais, das simples linhas ou inscrições no caldo primitivo da vida. 
Mas isto não implica confundir a arte com a ciência: estas imagens não registam o aparecimento de uma forma particular do vivo (e por isso não facultam qualquer tipo de conhecimento sobre a vida). O nome «bio-arte», aliás, é em si um contra-senso porque a obra sempre se separou do viver para mostrar a pura possibilidade da vida. Estas imagens são sinais endereçados ao (im)possível da vida, o qual se joga em cada lance que pode (ou não) ser a génese de algo. E a esta luz — à luz destes quimigramas — talvez seja possível ler de outro modo o segundo versículo do livro do Génesis. De um modo definitivamente ateu.

… E o Espírito de Deus pairando sobre as águas. Ruakh — Espírito, sopro ou vento — é, em hebraico, uma palavra do género feminino. E o verbo «pairando» diz-se merachefet,  cujo final (formado pela letra  ת, «tav», som do T) indica também que se trata de uma terminação feminina. De resto, o mesmo verbo também pode significar a ternura e mesmo o amor por uma criança (que se acalenta e vivifica). 
Nietzsche, no fragmento citado, utiliza igualmente o verbo pairar, schweben («pairar sobre a Terra, numa cúpula de estrelas…») quando descreve a experiência do «espírito livre» ouvindo a nona sinfonia de Beethoven. Mas se a coincidência na vida implica a coexistência no mesmo espaço e ao mesmo tempo, já a coincidência na arte permite o encontro à distância e através da história. Como se «pairar» fosse o verbo comum para quem faz e para quem contempla a obra (ou para quem já a refaz, contemplando-a). Dois corpos pairando e tendo o mesmo centro gravítico: a obra. Dois espíritos coincidindo no ponto móvel que persiste no tempo (e é isso a tradição — a transmigração dos espíritos livres — na história da arte ou dos génios).
Quando uma vida nasce, paira acima da Terra — parece um espírito (um sopro ou um vento) acabado de sair da não-vida. Que a terra lhe seja leve — eis o que se deveria soletrar face a um recém-nascido (e não a um morto), porque, quando uma vida nasce, é a própria Terra que parece pairar acima de si mesma, sobre as águas. 

O sopro de Deus é feminino ou, dizendo melhor, «Deus» não designa outra coisa senão o frémito de uma coincidência. É o nome feminino do encontro, o tremor, o sussurro ou a agitação entre dois elementos fecundos — que caiem um no outro ou um para o outro: que co-incidem! 
E o artista é feminino porque, para criar, tem de retirar-se. O artista paira na névoa da não-vida. Criando, deixando (quase) de existir — até que a coincidência (a «silenciosa coincidência») se dê. 

Depois da coincidência se dar, libertam-se as águas.
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