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Documento do mês | O Conde dos Fenais e as Vacas do Corvo

Documento do mês | O Conde dos Fenais e as Vacas do Corvo

Amâncio da Silveira Gago da Câmara (1852-1919), agraciado pelo rei D. Carlos com o título de Conde dos Fenais (10 abril 1902), era descrito no Álbum Açoriano como “um dos vultos mais distintos do sport português” e cavalheiro muito viajado “pelas principais cidades do mundo”[1], imagem reforçada pelo artigo que Aires Jácome Correia publicou em sua homenagem[2] pouco tempo volvido sobre a morte deste titular (11 de outubro de 1919[3]), significativamente intitulado – O Conde dos Fenais e o janotismo contemporâneo.

Janota, termo hoje em desuso, designa uma pessoa elegante e cuidada na aparência, podendo também assumir o sentido de estroina, extravagante ou perdulário[4], tudo características conformes à história de vida de Amâncio Gago da Câmara, mas que eclipsam outros aspetos mais relevantes do seu legado, designadamente a veia artística – de que o autorretrato divulgado na rubrica deste mês é um bom exemplo – e, acima de tudo, o empenho posto na criação e aperfeiçoamento de raças cavalares, bovinas, suínas e galináceas – aquilo que os ingleses designam de animal husbandry – como comprovam muitos dos 1.148 exemplares da sua Livraria particular, doada à Biblioteca Pública de Ponta Delgada por disposição testamentária[5].

Embora a tradição oitocentista dos gentleman farmers micaelenses seja sobretudo conhecida pelos seus resultados no domínio agrícola (laranja, tabaco, chá, ananás) e paisagístico (quintas, parques, jardins), a introdução e naturalização de novas raças de gado leiteiro também se conta entre os seus contributos, como comprova o excerto de um artigo publicado por André do Canto no número inaugural do Agricultor Michaelense (outubro 1843) sob a epígrafe “Melhoramento das raças em S. Miguel”:

(...) Em relação à quantidade e qualidade de leite, creio que são preferíveis às nossas vacas as da Holanda e as de Jersey. Estas últimas dão bastante leite e mui manteigoso (...) Estas boas qualidades convenceram os Srs. Manuel Inácio Silveira e João Silvério Vaz Pacheco de Castro a fazerem todos os esforços para as propagarem, o que felizmente têm conseguido. (...) As vacas da Holanda, introduzidas pelo Sr. Duarte Borges da Câmara Medeiros, pertencem a uma das raças mais abundantes de leite e, conseguintemente, muito conviria que se tivessem multiplicado.[6]

Amâncio Gago da Câmara não pertenceu a esta geração pioneira de “Lavradores de luva de pelica”[7], mas foi criado nesse ambiente, como ele próprio recorda numa carta dirigida em 1898 a Francisco Afonso Chaves, seu principal interlocutor no processo de apuramento das vacas importadas do Corvo:

(...) Haverá uns bons 25 anos pouco mais ou menos [1873], tive eu um gado de vacas do Corvo nas propriedades do Botelho pertencentes a minha tia e madrinha (Condessa de Fonte Bela) que, apesar de serem sempre muito bem tratadas nunca chegaram a crescer, tendo também nessa ocasião um touro que era um exemplar de primeira ordem.[8]

As características liliputianas do gado corvino já tinham chamado a atenção de alguns britânicos que escreveram sobre os Açores, como foi o caso de Thomas Ashe[9], que destaca a semelhança destas vacas com as Alderney, uma raça “nativa” das ilhas inglesas fronteiras à Normandia que se distinguia pela sua pequena envergadura – Aparentemente, qualquer tipo de gado diminui em proporção ao tamanho das ilhas (...) e nas Flores e Corvo o tamanho de um boi não excede o de uma vaca Alderney.[10] Atento à influência do meio natural na morfologia das espécies e evocando Darwin e outros autores, Amâncio Gago da Câmara procurou associar Francisco Afonso Chaves – que também trouxera do Corvo uma vaca em 1897 – a este seu projeto:

(...) Vejo que ainda estás em dúvida de ser ou não ser uma raça definida a raça corvina antiga. Darwin diz o seguinte (...) O Sanson, agrónomo-veterinário e distinto professor francês (...) afirma a possibilidade da transformação por que podem passar os animais por meio da seleção (...) É pois para mim indiscutível a possibilidade de tornar fixa a raça do Corvo que antigamente existiu bastante pura naquela ilha. (...) Uma vez admitido o que levo dito, forçoso é confiar que a raça do Corvo foi uma raça formada pelo decorrer do tempo, clima e mais circunstâncias, portanto, conseguiremos não só uma raça como a antiga, senão ainda mais pequenina se a tanto nos ajudar o engenho e arte; espero que não me abandones neste propósito, a fim de mais bem conseguir o meu intento.[11]

A correspondência de Amâncio Gago da Câmara existente no arquivo de Francisco Afonso Chaves depositado na BPARPD, descreve as várias etapas do projeto de criação das vacas do Corvo nos estábulos da sua propriedade na rua Formosa (atual rua de Lisboa), também ilustrada pelo conjunto de imagens captadas por Afonso Chaves, cujo espólio fotográfico se encontra no Museu Carlos Machado, processo metódico conduzido ao longo de quase duas décadas (1895-1912), traduzindo-se na importação de centenas de cabeças de gado (209) da mais pequena ilha do arquipélago, isto sem contar com as reses já nascidas em Ponta Delgada, cujo crescimento foi criteriosamente documentado numa lista de 30 animais, todos eles com nome próprio, em que apenas 3 possuíam mais de um metro de altura medido das espáduas ao chão[12].

As dimensões peculiares do gado despertaram a curiosidade de alguns naturalistas e homens de ciência, como foi o caso do Príncipe Alberto do Mónaco que visitou em 1902 os estábulos da rua Formosa na companhia de Afonso Chaves[13], e emprestavam-lhe características distintivas dignas de uma cabeça coroada, como comprova a oferta de um casal de animais da ilha do Corvo ao rei D. Carlos por ocasião da visita régia aos Açores no verão de 1901[14]. As frequentes estadias em Lisboa e no estrangeiro, acentuadas pelos problemas de saúde e intervenções cirúrgicas a que foi submetido no final da vida, não permitiram ao Conde dos Fenais seguir de perto ou levar a bom porto o seu projeto inicial, que o próprio resume numa longa carta dirigida a Afonso Chaves em 1913, da qual se transcreve o seguinte excerto:

Sabendo que esta raça de vacas da ilha do Corvo tendia a desaparecer, em vista de múltiplos cruzamentos e outros meios, lembrei-me, de combinação contigo, ver se obstava à sua completa extinção, a bem de continuar a existir essa raça, talvez a mais pequena do Globo. (...) Para tal fim comecei a importar animais daquela ilha, desde 19 de Junho de 1895 até 17 de Julho de 1912, fazendo um total até à data de 209 reses importadas daquela ilha, o que demonstra evidentemente, quanto mais não seja, alguma perseverança. (...) Tudo o que tenho feito foi sempre baseado mais ou menos nos escritos de sábios zootécnicos e naturalistas estrangeiros de nomeada, não valendo a pena enumerar os nomes dos mencionados autores, visto que tais escritos estão ao alcance de toda a gente que se queira dar ao trabalho de os consultar. (...) Tenho livros de história natural e tratados de zootecnia de valor, no entanto sou obrigado a confessar que em nenhum deles vejo coisa alguma que me possa esclarecer, no sentido de obter processos mais rápidos dos que até hoje tenho usado para conseguir o meu intento. Sobre este assunto muito há para dizer, mas o meu estado doentio não me permite ocupar dum tal trabalho, conforme tu muito bem sabes.[15]

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[1] Cf. Álbum Açoriano. Lisboa: Antiga Casa Bertrand , 1903, p. 84.

[2] Cf. Revista Michaelense. Ano 2 (n.º 5) nov. 1919, p. 554-565.

[3] BPARPD. Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada. Registo de óbitos, 1919 (vol. 1), ass. n.º 390.

[4] Dicionário da língua portuguesa contemporânea – uma realização da Academia das Ciências de Lisboa e da Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: ACL e FCG, 2001.

[5] Testamento cerrado, datado de Ponta Delgada, 3 ago. 1918, aberto a 13 out. 1919 e registado a 15 – BPARPD. Administração do Concelho de Ponta Delgada. Registo de testamentos, lv n.º 120, n.º 4547, fl.s 2-15 - ACPDL, lv. 915.

O mesmo testamento, precisamente com o mesmo texto, está registado a seguir, sob o n.º 4548 (fl.s 15-26v.º), com data de 16 out. 1919.

[6] Cf. O Agricultor Michaelense. 1.ª série. N.º 1 (outubro 1843), pp. 10-12.

[7] Expressão tomada de empréstimo a Maria Carlos Radich. Agronomia no Portugal Oitocentista: uma discreta desordem. Oeiras: Celta Editora, 1996.

[8] Cf. Carta de Lisboa (Junqueira), 26 dez. 1898 – BPARPD. Arquivo Francisco Afonso Chaves. Correspondência, cx. 3, n.º 960.

[9] Vd. History of the Azores, or Western Islands… London: Printed for Sherwood, Neely and Jones, 1813.

[10] Cf. Maria das Mercês Pacheco. Viajantes nos Açores: o olhar estrangeiro sobre as ilhas desde o século XVI. Ponta Delgada: Artes e Letras, 2021.

[11] Cf. mesma carta da nota 8.

[12] Lista datada de 12 junho 1903, com caligrafia de Francisco Afonso Chaves – BPARPD. Arquivo F. A. Chaves. Correspondência, cx. 3, n.º 973.

[13] Cf. Cartão de visita do conde dos Fenais a Francisco Afonso Chaves. Lisboa, 10 ago. 1902. – BPARPD. Arquivo F. A. Chaves. Correspondência, cx. 3, n.º 970.

[14] Cf. Cartão de visita do conde dos Fenais a Francisco Afonso Chaves. [Lisboa, 1901?] – BPARPD. Arquivo F. A. Chaves. Correspondência, cx. 3, n.º 989.

[15] Cf. Carta do conde dos Fenais a Francisco Afonso Chaves. Ponta Delgada, 7 jan. 1913 – BPARPD. Arquivo F. A. Chaves. Correspondência, cx. 12, n.º 5116.

Fonte: http://www.culturacores.azores.gov.pt/agenda/default.aspx?id=44265
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