Cineasta, escritor, ceramista, pintor, farmacêutico de profissão e aviador nos tempos livres (em miúdo, perguntava-lhe sempre porque é que nunca tinha sido bombeiro), herdei do meu avô o interesse hiperactivo pelas artes, o sublime e clandestino prazer de conspirar contra o sistema, a tendência para projectar e edificar incessantemente, o vício dos banhos de mar pela tarde fora e das conversas à mesa pela noite dentro. Herdei também o daltonismo (embora menos acentuado), o incrível fascínio pelas mulheres, a incapacidade de lidar com conflitos, o total desrespeito (talvez "desinteresse" seja mais adequado) pela autoridade e por todo o tipo de formalidades em geral, e uma rara estirpe de taralhoquice extrema.
Foi precisamente por ele ser tão alheio às ideias comuns que apenas lhe detectámos o Alzheimer já este ia relativamente avançado — "Tenho uma memória selectiva…" — afirmava confiante para nos descansar. E tinha mesmo. Conta a minha avó que, quando eram mais novos, encontraram uma senhora amiga num certo jantar elegante. Foram cumprimentá-la e o meu avô perguntou-lhe pelo marido. Apercebendo-se nesse instante de que este tinha falecido, saiu-se agilmente com a solução mais airosa que lhe ocorreu — "Continua morto, não é verdade?" — soltou a plenos pulmões, enquanto continuava a sacudir a mão da senhora num cumprimento que pareceu prolongar-se até ao infinito. A minha avó empalideceu, a senhora bloqueou, e o meu avô seguiu em frente, presumivelmente à procura de um buraco negro onde se enfiar.
Sim, o Vasco Branco era o tipo de pessoa que se mete nessas alhadas sem saber bem como. Era também o tipo de pessoa de construir, na cave da própria casa, uma sala de cinema com quarenta lugares sentados, cabine de projecção e minibar, onde exibia os filmes proibidos pelo antigo regime e onde, por entre cálices de anis Dómuz, partilhava as "Notícias do Bloqueio" com outras mentes amotinadas, como era o caso de João Sarabando, Vasco Mourisca, Egito Gonçalves ou Mário Sacramento, líder da oposição a quem dedicou o livro Roteiro Impopular de Uma Cidade.
Outros títulos, como Os Generosos Delírios da Burguesia, As Regras do Jogo ou Encontros Imediatos sem Qualquer Grau — em que a guerra colonial é retratada por um extraterrestre — deixam entrever um pacifista profundamente envolvido em questões políticas e sociais, autor também daquele que foi, possivelmente, um dos primeiros livros em português a debruçar-se sobre a temática ecológica. Lançado em 1959, Do Ignoto aos Satélites Artificiais não foi especialmente bem recebido pela crítica, tendo sido na altura acusado de alarmista.
Membro do júri internacional do Festival de Cannes, em 1964, autor do grande painel de cerâmica que adorna o Almeida Memorial Hospital, no Japão, era o meu avô que me contava as melhores histórias para comer a sopa. Entre saltos de paraquedas, longas caminhadas no deserto e sequências de acção em casas de ócio nocturno pejadas de mafiosos, as aventuras dos temerários "Renhonhóques e Renhonhúques" desenrolavam-se num universo algures entre Os Salteadores da Arca Perdida e as flanantes bandas desenhadas do Corto Maltese. Já saltei de paraquedas, já estive no deserto e sou frequentador assíduo de casas de ócio nocturno pejadas de mafiosos. Pergunto-me se haverá algum tipo de relação.
Nascido e criado de volta da ria — que retratou de forma única no filme O Espelho da Cidade — Vasco Branco esteve sempre intensamente ligado a Aveiro, cidade onde vivi durante os meus primeiros quatro anos, e onde passámos centenas de tardes a ver filmes alugados — do Kubrick ao Rambo — e a copiá-los na clandestinidade. Amante devoto da ficção científica, o meu avô ia verbalizando o seu conhecimento erudito acerca de quase tudo, entremeado com pontuais curiosidades acerca da possibilidade de vida noutros planetas, enquanto eu sonhava e fazia desenhos no chão.
O funeral é amanhã, mas ele não vai lá estar, tendo preferido provavelmente passar a tarde a flutuar, de barriga para cima, ao doce sabor das ondas do Algarve. Caso contrário, o Mundo teria perdido hoje um grande homem. Continua vivo, não é verdade?