Uma viagem à actualidade das editoras electrónicas em Portugal
Vinyls por Lubomir Panak
Já lá vão 20 anos desde que António Cunha convidou DJ Vibe para lançar o que seria o primeiro selo português de música electrónica de dança, responsável entre tantas outras pela edição original do hit mundial “So Get Up” em 93. Desde então muita coisa aconteceu.
Aconteceu a Internet por exemplo, e com ela as aplicações de partilha de MP3, as licenças Creative Commons, as netlabels, os blogs, as lojas online de música em formato digital. A falência, a partir de 2004, de várias grandes distribuidoras de vinil (como a britânica Amato, a alemã Neutron ou a japonesa Cisco) anunciava o fim de uma era ou, no mínimo, uma colossal transformação na indústria musical, e nos modos de ouvir, partilhar, vender e divulgar música electrónica de dança.
Burocracia à parte, hoje em dia é relativamente fácil montar uma editora digital, contando para o efeito com uma série de serviços de distribuição que se encarregam de fazer a música chegar às principais lojas online: o risco financeiro é mínimo quando comparado com uma edição física e o processo acaba por ser bastante democrático. Não é de admirar portanto que as editoras brotem diariamente dos quatro cantos do mundo como cogumelos, e Portugal não é excepção.
A par de selos electrónicos mais mainstream, como a Magna Recordings de Carlos Manaça, com doze anos de existência, as consagradas Naked Lunch de A. Paul e Labrynth, ou a Exklusive Records, que a um ritmo alucinante editou quase 200 referências em menos de dois anos, vemos florescer e perdurar também editoras de carácter mais experimental como a Crónica, a Variz, a Mimi ou a ecléctica Thisco.
PLAY: likeicare - 9.19.0.7.15.14.5 2.0 (Mimi)
@c (Crónica)
Das 57 editoras portuguesas inscritas até à data na plataforma online Resident Advisor, e das quase 100 listadas no site da Discogs, apenas cerca de 30 se mantêm actualmente no activo, o que ilustra o carácter inevitavelmente volátil do panorama digital: easy come, easy go.
Assistimos no entanto durante a última década a uma série de casos de sucesso em Portugal, traduzidos em linhas editoriais coerentes e em esforçada periodicidade. Exemplo disso é a estética de fusão da Enchufada, a quem se deve o lançamento do primeiro disco dos aclamados Buraka Som Sistema; outro é a Discotexas, que num registo mais Nu-Disco tem desde 2008 vindo a provar o valor das suas apostas retro-futuristas, apoiada também ela pela crítica internacional.
PLAY: Da Chick - Cocktail (Discotexas)
O Minimal Techno parece ter constituído também, a partir do final da década passada, um terreno fértil para a proliferação de editoras digitais portuguesas. De destacar por exemplo a Monocline Records que, forjada pelas hábeis mãos de Re:Axis, conta desde 2008 com um catálogo recheado de originais e remixes assinados por artistas internacionais de renome como Audio Injection, From Karaoke To Stardom ou os checos Insect Elektrika. Ainda nos domínios do Minimal, atenção à Sui Generiz, fundada pelo produtor português Alexx Wolfe, que viu recentemente uma faixa sua editada nada mais nada menos do que pela Minus12 de Richie Hawtin.
PLAY: Alexx Wolfe - Free (Sui Generiz)
Vinyls por Lubomir Panak
Embora o possa ter dado a entender anteriormente, não penso de modo algum que o vinil esteja morto: apesar dos inúmeros obstáculos financeiros e logísticos, e da crescente adesão aos formatos digitais, ainda há quem não dispense o calor analógico provocado pela passagem de um minúsculo diamante sobre as ranhuras cuidadosamente gravadas numa boa e velha rodela de policloreto de vinila. E ainda há também, no contexto da electrónica de dança portuguesa, editoras que continuam a apostar convictamente neste formato.
Tal é o caso da Groovement, casa de artistas como Johnwaynes, Ka§par e Jorge Caiado, que vai já na sua 17ª edição e que continua a prestar culto ao vinil como arma de escolha. Discos como “Trust” de Vahagn ou “Electric Purple” de Infestus têm-nos surpreendido sucessivamente, demonstrando que o actual panorama da criação electrónica nacional não fica a dever nada àquilo que se faz lá fora. Sem esquecer referências incontornáveis como a Soniculture ou a Flow, e apostas mais recentes como How The Other Half Lives ou Much Love – um dos vários projectos editoriais de Alkalino – haverá que prestar o devido reconhecimento à Bloop que, surgida das entranhas da Loop Recordings, se tornou extremamente popular no país graças não só a uma cuidada escolha musical mas também aos seus solarengos eventos e comunicação fora de série.
PLAY: Infestus - Electric Purple (Groovement)
Se estilo há que, para além dos múltiplos subgéneros do House e do Techno, tem vindo a dar cartas no que diz respeito à produção de electrónica underground portuguesa, este é o Bass Music: com as suas raízes no Reino Unido, o movimento Bass atravessa estilos como o Jungle, UK Garage, Two-Step e Dubstep. Em Portugal é representado por editoras como a Iberian Records, formada em 2006 algures entre Lisboa e Barcelona, e por artistas como Octa Push, DJ Marfox, Violet e em parte também pelos Photonz, de cuja editora – One Eyed Jack – nos ocuparemos a seguir.
Quem se lembrar da série de culto Twins Peaks, de David Lynch, recordará com certeza que One Eyed Jack era o bordel da vila onde, nas palavras dos próprios Photonz “a maioria dos acontecimentos macabros tinha lugar”: tendo atraído a atenção de críticos internacionais do calibre de Philip Sherburne (Spin, Resident Advisor, The Wire) a editora assume uma estética algures entre a música Rave do início dos 90’s e uma atitude algo mais séria a la Chicago/Acid House, contando até à data com quatro lançamentos em vinil.
PLAY: Cardopusher - Body Slam (Iberian Records)
Independentemente de uma certa dificuldade de navegação através desta selva de projectos editoriais, dá um certo gosto ver tanta criatividade e empreendedorismo à solta, especialmente quando contextualizados à luz da actual conjuntura financeira e pessimismo generalizado. Assistimos inclusivamente ao renascer de selos como Question of Time (1995) de João Daniel, que em parceria com a Womb Label de Tiago Henriques voltou recentemente à carga com novas referências.
Se nos debruçarmos por outro lado sobre uma nova geração de editoras, facilmente nos deparamos com a jovem Pluie Noir, que além de artistas sonoros como Alex Smoke (UK), Ditch (Japão) ou Dr. NoJoke, se assume como “colectivo não convencional e multidisciplinar”, apostando com evidente mestria nas artes visuais. De destacar também a Terrain Ahead: com os seus beats arrastados e paisagens sonoras profundas, IVVVO, Purple e Solution convidam ao sonho e à viagem, frequentemente acompanhados do produtor Trikk.
Tendo sido recentemente recrutado para o roster da Paramount Artists (junto de nomes como Carl Craig ou Steve Aoki), Trikk integra ainda as apostas de duas emergentes editoras portuguesas, de seu nome Con+ainer Music e FREIMA Labs.
Com sonoridades “atípicas para gente atípica”, a Con+ainer estabelece uma ligação via música entre as cidades do Porto e de Hamburgo, contando para já com artistas como Ludovic, Mould (ambos fundadores da editora), Miguel Torga e o acima citado Trikk. Já a aventureira Freima Labs opta por dedicar o seu catálogo exclusivamente à música electrónica de origem Lusa, estando o lançamento do seu primeiro registo - uma compilação intitulada “Weather Forecast” - previsto para Setembro deste ano.
PLAY: Miguel Torga - A Minha Casa não é a Tua Casa (FREIMA Labs)
Assemble Music e Príncipe são ainda dois nomes a ter em conta nos tempos que se avizinham: se a primeira arranca ao mais alto nível com a edição em vinil de artistas como Daze Maxim e Dorian Paic, a segunda nasce de uma espécie de cruzamento genético entre a já clássica loja de discos lisboeta Flur e o colectivo artístico Filho Único, e traduz-se numa proposta editorial com pernas para correr, pernas que já lhe valeram um detalhado artigo de Tony Poland na Juno Plus, a nova publicação online da Juno Records.
Assemble Music
A música electrónica está bem viva em Portugal e segue o seu próprio caminho, traçado mais ou menos ao acaso, adaptando-se à realidade do momento e aprendendo a tirar proveito das transformações radicais sofridas pela indústria nos últimos tempos. Ao lado de selos já estabelecidos, surge em confiante equilíbrio sobre o fio da navalha uma nova descendência de editoras, empenhadas em mostrar ao mundo com quantos bits se faz um beat.